sábado, 15 de setembro de 2012

Bob Dylan e a Tempestade

O amigo dylanesco Miguel Cordeiro, consegui captar de uma forma bem particular, a essência de 'Tempest', álbum de Bob Dylan, recém-lançado, com seu desenho sobre papel e um belo texto, que reproduzimos abaixo, no qual faz uma breve resenha do novo disco do velho bardo!

Bob Dylan e a Tempestade
A resposta que soprava com o vento que Bob Dylan falou no início da década de 1960 era uma brisa de esperança em uma época que ainda restava hipóteses de fraternidade universal. Mas agora, ao lançar o álbum Tempest, o poeta roqueiro da contracultura vocifera um amontoado de dúvidas sobre um mundo violento, desesperançado, envolto por tempestades sem previsão para acabar e nem sinal de bonança no horizonte.
Aos 71 anos de idade, o artista Dylan continua em plena forma. Algo quase impossível de se pensar para um astro da música popular que iniciou carreira há cinquenta anos atrás. E se sua voz soa desagradável para os apreciadores do bel canto, ela se encaixa como uma luva para aquilo que ele se propõe a dizer. As palavras emergem das catacumbas da alma na melhor tradição dos velhos blueseiros.

Sua poesia musicada está tão afiada quanto nos melhores tempos, porém enxuta, com versos curtos e menos discursivos. As imagens que surgem de Tempest falam de cadáveres arrastados na lama, feridas abertas em sangue, políticos que mijam nas pessoas, reis que destroem cidades e indivíduos, vinhos envenenados, o desespero dos náufragos do Titanic, e os tiros que mataram seu amigo John Lennon.
A sonoridade de Tempest segue o padrão que Dylan estabeleceu para sua criação a partir de Love and Theft, álbum de 2001. Rocks básicos, blues, folk e o cancioneiro pré-rock´n´roll dos anos 1930 e 1940. Nada de influências moderninhas, nenhum acorde de guitarras distorcidas simuladas através de processos digitais que se tornaram padrão no rock marqueteiro do hype dos últimos quinze anos.

Tudo em Tempest é propositalmente elaborado para estar do lado oposto ao que existe na cena da música pop atual. A coisa é crua, feita na mão, na unha. E apesar do clima sombrio e apocalíptico que as canções evocam, Dylan e sua fantástica banda de apoio parecem se divertir enquanto executam a trilha sonora destes dias malucos. Até parece a orquestra do Titanic nos momentos finais.

Quem quiser conferir um pouco mais da arte de Miguel, segue o link: http://www.miguelcordeiroarquivos.blogger.com.br/index.html

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Tempestade na alma!

Uma semaninha antes do seu lançamento oficial e eis que 'Tempest', novo álbum de Bob Dylan, vazou na internet. Uma pedrada dylanesca! Um dia após o vazamento, a Sony tratou de disponibilizar oficialmente o álbum, para audição gratuita, através do iTunes.

Confesso que estou embriagado de 'Tempest'! Desde ontem à noite (03/09, quando o disquinho vazou) que não escuto outra coisa. Diria até que após sucessivas audições, já tenho inclusive minhas preferidas: "Narrow Way"; "Pay in Blood" & "Duquesne Whistle", mas os amigos dylanescos não devem levar isto tão a sério, porque hoje mesmo pode mudar. Em se tratando de Dylan, sou extremamente volúvel e às vezes demoro um pouco pra me acostumar com algumas canções.

A faixa título, "Tempest", a tão aguardada canção sobre o naufrágio do Titanic, é uma verdadeira epopeia de quase 14 minutos! Poderia mesmo ser um filme, mas daqueles antigos, talvez em preto & branco, sem os efeitos especiais do James Cameron.

Abaixo, mais uma excelente contribuição do amigo dylanesco Márcio Grings, que nos permitiu compartilhar sua ótima resenha do novo disco:

Tempestade na alma!

Resenha de "Tempest", 35° álbum de Bob Dylan (04 de setembro de 2012) - Com comentários, impressões e citações extraídos da comunidade do Facebook ‘Bob Dylan -  Brasil’ (Agradecimentos: Doofy Mostarda, Sergio Pinho Alves, Carolina Andrade, Thiago Joey, Fábio Feldman, Thiago Ramires, e muitos outros dylanescos de plantão. Agradecimento especial: Denise B. Lopes)
O navio nem atracou, e o disco já está navegando. Em primeiro lugar: aos 71 anos, ninguém, mas ninguém mesmo - toca Dylan como Dylan. E falo principalmente das canções dos últimos três álbuns – não incluindo o natalino “Christmas in the heart” (2009). Colocando no saco as novas músicas que acabam de vazar na rede, os 10 temas também foram compostos sob medida para a irregular voz catarrenta do cantor e compositor norte-americano.

E mais: profetizo sem medo de errar: ”Tempest”, álbum com data agendada para o próximo dia 11/09, sem dúvida irá postular em todas as listas dos melhores de 2012. Depois de vazar por inteiro na internet na última segunda-feira (03), a Sony resolveu disponibilizar o álbum na íntegra para audição (gratuitamente e por tempo limitado).


O título já é o recordista do ano no quesito pré-venda no site Amazon. Sobre o nome do álbum, especulou-se que seria uma referência à “A Tempestade”, última obra de William Shakespeare. Dylan laconicamente refutou a referência em entrevista à revista Rolling Stone.  Agora prepare-se - as letras estão sim - shakesperianas e quilométricas: amor, tragédia, traição, vingança, e tantos outros temas comuns à humanidade a milênios.

Segundo o blog Dylanesco, a imagem da capa mostra um detalhe da fonte Palas Atena, localizada em Vienna, Áustria. Atena é, na mitologia grega, a deusa da guerra, da civilização, da sabedoria, da estratégia, das artes, da justiça e da habilidade. John Smith, um morador de Duluth, onde Dylan nasceu, afirmou no Facebook que na escola da cidade havia uma estátua parecida.
O bardo gravou o álbum no Groove Masters, estúdio de Jackson Browne, em Santa Monica (CA), com a banda que atualmente o acompanha na estrada (mesma trupe que passou pelo Brasil em abril), mais a ajuda de David Hidalgo (Los Lobos). O disco foi produzido por Jack Frost, ou seja, pelo próprio Bob Dylan, já que Frost não passa de um alter ego do artista.

“Tempest” começa com a satírica “Duquesne Whistle" e sua introdução foxtrote em fade-in que nos deixa com a sensação de estarmos ouvindo um radinho de pilha ao longe, como um som opaco vindo da cozinha. Piano, violão e guitarras fazem um empolgante esquenta ‘jazzy’ de 43 segundos. Na sequência surge uma melodia repetitiva empurrada pela pulsação do contrabaixo acústico de Tony Garnier, em conjunto com a bateria de George Receli e a guita' rítmica de Stu Kimball e supostamente David Hidalgo. Dylan canta “You say I’m a gambler / You say I’m a pimp / But I ain’t neither one” [Você diz que eu sou um jogador / Você diz que eu sou um cafetão / Mas eu não sou nenhum desses]. A banda soa como uma velha locomotiva passeando num desenho animado. “Duquesne Whistle” ganhou vídeo clipe e também foi escolhida para figurar como primeiro single do álbum.
“Soon After Midnight” reza na cartilha country. Também rememora Buddy Holly, parece algo familiar, antigo e deslocado no tempo. Steel guitar mandando ver, entrecortado por uma guitarra à lá James Burton. Dylan avisa que logo depois da meia noite, ele irá se encontrar com a Rainha das Fadas. "Charlotte's a harlot / Dresses in scarlet / Mary dresses in green  / It's soon after midnight / And I've got a date with the Fairy Queen". Hummm... Isso me soa a um puteiro!

“Narrow Way" é um hipnótico blues pesado com riff de guitarra repetitivo que nos deixa em ponto de bala. A música nunca muda, e isso, acreditem - não é irritante! 7min e 28seg de pura festança, no máximo uma guitarra gritando um pouco mais alto que a outra. Como galos de rinha reconhecendo o terreno e mostrando as esporas. Logo no início ele diz: "I won't even think about what I left behind" [eu não vou nem pensar naquilo que deixei para trás]. Quando estamos no meio do caminho, não tem outro jeito. Receli dá show na bateria. Alguém disse que “Narrow Way” poderia ter sido gravada em 1965, quem sabe seria uma boa faixa em “Bringing It All Back Home” ou “Highway 61 Revisited”? Não tenho dúvida que entrará nos setlists de suas apresentações. Outra constatação: acredito que Dylan tenha encontrado sua melhor banda, ou no mínimo a que mais raciocina na sua batida atual.

“Long and Wasted Years” trata-se de outro tema chamuscado com influência caipira. Na introdução, os músicos atuam como uma banda de quermesse com equipamentos de segunda mão. Quando Dylan canta, o lance fica mais sofisticado. Dá vontade de “tirar” a prenda e sair dançando de rosto colado pela casa. A melodia lembra “I'm Tired Joey Boy”, de Van Morrison, tema que Dylan tocou no ‘Theme Time Radio Hour’, seu extinto programa de rádio. Outra balada de lascar! A letra sugere um amor proibido. Em dado momento, Dylan confessa: "I wear dark glasses to cover my eyes / there are secrets in them i cant disguise” [Eu uso óculos escuros para cobrir meus olhos / Há segredos neles eu não consigo disfarçar].  Revelador.
Se buscarmos comparações com "Love & Theft, álbum lançado em 2001 (um dos preferidos de Bob), eis a "Mississippi" de "Tempest". "Pay in Blood" tem o vocal catarrento e desgastado, tipo “recém acordei, fumei um charuto e vou cantar uma canção!?!?”. Desde já é minha preferida. Eu percebo resquícios de Stones nas guitarras, e nesse caso, abriria um exceção imaginando Keith Richards como vocalista. Imaginem como iria ficar? Finésse!
Bom, chegamos em “Scarlett Town”. Violão na linha de frente, banjo no meio campo, piano minimalista e violino a lá "Scarlett" Rivera. Uma triste bonita melodia que poderia ser trilha sonora de um faroeste de Sam Peckinpah (eu já vi esse filme?!). A canção lembra vagamente o clima sombrio de “Nettie Moore”, de ‘Modern Times’. E essa “Scarlett Town” que Dylan nos narra, pode ser qualquer pequena cidade do mundo. Em uma de minhas audições, voltei ao bairro, a rua, relembrei muitas pessoas com as quais convivi. Quando adentramos o cerne do tema, Bob SEMPRE nos convence.

“Early Roman Kings” não passa de um blues descarado, encardido que emula “I'm a Man”, de Bo Didley. "Mais uma daquelas que o velho pega emprestado". Exato! Dylan aprecia recauchutar canções antigas. Algo que ele fez com mais frequência nos últimos álbuns. E esses empréstimos melódicos são comuns na história do blues. Como bem lembrou o amigo Sérgio P. Alves no Facebook: “I'm a Man” também foi inspirada em “Hoochie Coochie Man”, de Dixon. Por sua vez, serviu de ponto de partida para a criação de “Manish Boy”. Ou seja, ninguém é de ninguém. Destaque para o acordeão de David Hidalgo, fazendo as vezes de Little Walter e transformando  a música numa espécie de Texmex Blues. Aparentemente, os “Roman Kings” a que se refere, não são os verdadeiros reis romanos de outrora, mas uma gangue nova-iorquina do início do século XX, formada, basicamente, por carcamanos.

“Tin Angel”, fala sobre um homem em busca de um amor perdido. Musicalmente é um dos pontos menos impressionantes do disco. De todo o modo, a banda fica apenas tique-taqueando e fazendo a cama para que o narrador possa contar uma das mais enigmáticas e trágicas histórias de amor da biografia dylanesca. Desde “Isis” ele não incursionava por um tema tão brutal: “You died for me / I’ll die for you". [Você morre por mim / E eu morro por você]. Ela coloca a lâmina no seu coração e parte para a eternidade ao encontro do amante. E ao chegarem no céu, existem tochas brilhantes que iluminam noites e dias. Alguém tem dúvida que Dylan é o Shakespeare da música POP?
“Tempest”, a faixa título do trabalho, emula uma das tragédias mais lembradas do século passado, o naufrágio do Titanic. O tema parece ter sido inspirado em uma canção da Família Carter. Essa autêntica epopeia dylanesca em ritmo de valsa, que começa puxada por uma rabeca e acordeão, figura entre as três canções mais longas do compositor (13min e 54seg) e mistura uma série de personagens obscuros com nomes ligados ao tema cinéfilo do filme, como o ator Leonardo Di Caprio (mencionado duas vezes). No entanto, esqueçam qualquer referência a James Cameron ou Celine Dion, o lance aqui é ancestral, remonta a uma antiga canção de ninar folclórica.

“Tempest” fecha as cortinas homenageando John Lennon. “Roll on John” saúda o velho amigo e narra episódios da carreira do Beatle, com direito a citações de “A Day in the Life” cruzando frente a versos de William Blake. "From the Liverpool docks to the red-light Hamburg streets / Down in the quarry with The Quarrymen / Playing to the big crowds, playing to the cheap seats / Another day in the life on your way to your journey then". Novamente steel guitar, violões, um banjo rolando de leve. Belo tributo ao mais turbulento dos Fab Four.
Simplesmente o Melhor Álbum de 2012. Na minha estante ficará lado a lado com "Time Out of Mind", "Love & Theft" e "Modern Times". Daqui há 20 ou 30 anos, tenham certeza, ainda vamos falar de "Tempest" e das profecias incrustadas nas letras. Afinal: "Se a Bíblia estiver certa o mundo vai explodir". Certas vezes ficamos com medo das turbulências que entortam em frente nossos olhos. Eu afirmo: - nada como uma tempestade dessas para nos deixar encharcados de júbilo.

por Márcio Grings, originalmente publicado no Blog do Grings: