terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Baixe o volume do áudio e percorra as próximas páginas


No texto abaixo, uma mais que bem-vinda colaboração de um grande amigo dylanesco, o popular 'Visconde'. Boa leitura!

Se ouvir os novos trabalhos do Dylan é como aguardar um próximo capítulo de um romance surpreendente que nunca se fecha, a expectativa de lê-lo sempre foi imensa por parte de um séquito qualificado de fãs. A pergunta era: seria capaz, o compositor e poeta mais destacado do século XX, oferecer uma prosa escrita a altura do seu talento na música?

A agência de notícias EFE divulgou no último dia 20/01, que o músico americano Bob Dylan assinou contrato para escrever seis novos livros, que eventualmente serão distribuídos pela editora Simon & Schuster. Em 2004 a editora americana publicou com sucesso de vendas “Crônicas: Volume 1” de Dylan. Dos volumes previstos, dois deles serão a continuação da trilogia proposta por “Crônicas”, que foi muito elogiada pela crítica.

Muito provavelmente a Editora Planeta do Brasil deverá assegurar o direito de reprodução para a língua nativa e repetir semelhante quantidade de vendas do Volume 1, que disponibilizou no início de 2005. Será o suficiente para que os fãs e admiradores do cantor e compositor americano possam ler da própria lavra do mestre aspectos e passagens de parte da sua longa e profícua carreira.


Mas ai que está. Dylan beira aos 70 anos a serem completados ainda neste primeiro semestre e a dúvida, com alguma pertinência, é sua capacidade e disponibilidade de tempo para escrever tanto de forma sã e compatibilizar com seu circo permanente de apresentações cuja agenda é das mais exigentes. Dylan tem se notabilizado, entre outras coisas, pela aparente decisão de levar a sua arte onde as portas estiverem abertas, sempre de maneira surpreendente e inovadora. Faz parte da tradição e comportamento do músico, desde há muito, não repetir performances tal qual roteiro de teatro. É sempre uma nova e nem sempre tão feliz abordagem de músicas dos mais de quarenta anos de carreira permeada com a produção recente. Basta lembrar que conta-se nos dedos de uma mão o número de compositores da chamada música popular que continua apresentando novas obras como ele.

A dúvida pode fazer algum sentido para os mais desatentos. Acredito em outra coisa. É muito provável que a sequência de Crônicas já deva estar em condição de prelo. Faz muito sentido Dylan ter esboçado e rascunhado a continuidade do primeiro volume no mesmo período em que o disponibilizou. Talvez apenas alguns detalhes estejam sendo considerados antes do seu lançamento, como ainda pode ser que faça parte de uma estratégia de vendas em doses homeopáticas para melhor assimilação do leitor. É da natureza do Dylan a produção de fôlego em quantidade e qualidade como o prova seu primeiro período de gravação, lá pelos anos 60 e o que foi servido na primeira década deste século: trabalhos impecáveis, amplos; novidades e referenciais adequados ao momento histórico da humanidade e da cronologia do próprio autor.


Se ouvir os novos trabalhos do Dylan é como aguardar um próximo capítulo de um romance surpreendente, que nunca se fecha, a expectativa de lê-lo sempre foi imensa por parte de um séquito qualificado de fãs. A pergunta era: seria capaz o compositor e poeta mais destacado do século XX oferecer uma prosa à altura do seu talento na outra arena? A resposta é sim e desta vez não estava no vento e sim nas páginas do primeiro volume de Crônicas. Literatura de primeira, coloquial sem ser simplório; criativo sem ser surrealista como parte de suas letras de música, objetivo e envolvente.

Nas pouco mais de trezentas páginas do primeiro volume, percorremos um período curto da vida do artista orientado por ele próprio e nesse percurso ninguém se perde no caminho apesar das particularidades e especificidades da América do início da segunda parte do século XX. Dylan nos brinda com uma articulação de idéias concatenadas e amarradas entre si de maneira a não nos distrairmos e nos perdermos com a generosidade de detalhes que acompanha as laudas. Um evidente talento como escritor. Serve informações alocando-as em contextos que ganham ares de uma composição pictórica, outro talento relativo do músico que já o depositou em telas que circulam por algumas galerias na Europa. E o que mais impressiona. Não há sequer uma linha ficcional em toda a obra como prova uma rigorosa comparação, por exemplo, com o livro “Dylan - A Biografia”, de Howard Sounes, publicado em 2002 pela Conrad Livros.


É possível percorrer com a voz e vez do Dylan algumas passagens muito semelhantes às narradas pelo Sounes em seu livro biográfico, o que lhe confere maior credibilidade, reforçando a recíproca que se torna verdadeira, daí exclamamos: “Hã! Então foi assim mesmo que as coisas aconteceram”.

Prato refinado e de qualidade para os fãs que vão sorvê-lo de um fôlego só, poderá ser apreciado sem moderação por qualquer um que tenha algum interesse num dos mais fascinantes personagens e sua obra dos tempos modernos.

J. de Mendonça Neto (Visconde)

domingo, 2 de janeiro de 2011

Que porra é Bob Dylan?

Aqui vai mais um texto do jovem e talentoso blogueiro gaúcho, Jonathan Rocha. Mais um amigo a dar sua contribuição ao Blog Dylan:

Aquele ar cigano, de pirata desencarnado, ou de vagabundo sem lar, que atravessa uma cidade com um cigarro na mão, atrás de fogo pra acender e tragar uma fumaça compatível com sua saúde, aquele ar, aquilo, exatamente aquilo é uma incógnita. Eu não quero definir esse ar, não quero encontrar a resposta pra essa pergunta. Isso nem teria como. Mas eu quero me indagar até o fundo da minha alma, quero exercitar os neurônios estrapolados do meu cérebro para tentar entender: que porra é Bob Dylan?

Procurei nas entrelinhas - nas estrelinhas também - embaralhadas do Chronicles e só encontrei mais rotas sem sentidos, desconexas. Na verdade não gostaria de encontrar a resposta, mas me esforço em raciocinar sobre, talvez se um dia encontrar eu escreva um livro contando. Talvez vire best-seller. Mas esse ar cigano, essa imcompreensão é o que compõe a mística desse judeu de ar cansado. E eu sei que aquela voz rouca que lança um uivo de dor, não quer ser ouvida pelo entusista descobridor de mistérios, mas quer lançar perguntas ao ar, quer fazer as situações-problemas aparecerem e desaparecem como um raio. E no final das contas, a gente coloca um disco do Dylan, acende um cigarro e chora ouvindo uma canção sem nem precisar entender que porra ele é.

Essa é a resposta da pergunta? Claro que não. Se fosse tão fácil assim os fazedores de hits na internet teriam a mesma mística, não? Então vai mais além. Mas vai até onde? Não quero saber, eu só quero mesmo é divagar um pouco sobre essa figura singular. Eu já sei que a resposta está soprando no vento, e que ele leva e traz essa resposta. Eu quero me antenar pra não perder ela de vista, deixar ela sempre a dois palmos da minha percepção. Mas nunca ouvi-la, definitivamente. Manter a incógnita, o mito, a preocupação em descobrir que porra é esse tal de Robert Allen Zimmerman!?!? Dizem que é muito mais que um cantor que escreve e canta poesias retiradas do fuindo das entranhas de um coração partido envelhecido em whiskey doze anos. Dizem que é muito menos que isso, um babaca, uma tarturuga escondida num casco. Mas põe casco né? Casco de cowboy solitário e de cristão renascido.

Acho que ele é o dono do Desire, isso basta. Basta até o café esfriar, e o tempo do outro chegar na mesa. O tempo do cigarro percorrer metade do papel e quase encostar no filtro, fazendo meus dedos recuarem por culpa do calor. É só o tempo de duvidar de quem é Bob Dylan, aí não basta mais. Vira outra coisa, troca de figura. Vira o dono do Bringing it All Back Home. Traidor do Folk. Os Mutantes também trairam a música brasileira, ou não? Essa história de guitarra elétrica já deu o que falar. O negócio, eu acho, é a traição. Dylan traiu a todos, por isso não podemos achar uma explicação. Como responder uma mentira, uma pergunta que não existe? Ele só é. Entendeu a ênfase no "É"? Então, tudo como está e para de se questionar.

Vou tentar não perder o vento de vista, deixar o ar cigano tocar nas minhas narinas e entrar nos meus pulmões. Ouvir a voz rouca praguejar contra a chuva, contra a sala de estar, contra qualquer coisa. Vou apenas me acomodar numa poltrona velha, colocar a mão no queixo e em posição filosófica endagar outra vez - não antes de rir de todo esse texto ridículo: Que porra é Bob Dylan?

Por Jonathan Rocha
Texto originalmente publicado no blog http://thesadparadise.blogspot.com/

Transformar o cara em Cristo, para depois chamar de Judas.


Por Jonathan Rocha, músico e escritor beat, 19 anos, de Porto Alegre/RS.

Talvez já tenha se dito ou especulado quase tudo sobre a vida e/ou carreira (artística) de Bob Dylan. Sobre os tempos reclusos, guerras conjugais, problemas com drogas, problemas com público, canções, interpretações falhas e também boas interpretações de sua obra. Mas acho que acima de qualquer pesquisa que se faça, acima de qualquer teoria, interpretação acadêmica, conversa de bar; está aquela sensação agradável (ou não) de ouvir uma canção, um suspiro que preenche a gaita, o toque dos dedos sujos na guitarra, ou no violão acústico, enfim, a sensação quase sempre única de ouvir algum trabalho do Dylan. E isso quer dizer que não importa o que o crítico disse sobre o disco, o que os fãs falam sobre a música ou que história ela guarda consigo, o que importa é o sentimento que eu sentirei quando os primeiros acordes soarem.

Não existe nenhum deus, nenhum herói, existe um cara compenetrado em escrever suas canções para desafiar o mundo, os críticos e - incrívelmente - os fãs. Toda interpretação que se faz, e isso não se vale apenas para as músicas do Dylan, é só metade do que a música representa, a outra metade não pode ser escrita, porque ela só se nota quando transborda pelo nosso corpo, seja em lágrimas ou em urros de raiva. Assim como as canções tribais, as sinfonias das metrópoles, as canções de Dylan simplesmente existem porque deveriam existir. Aquilo é um conjunto, Dylan traduz o asfalto quente, o óleo diesel, o canto do pássaro em retirada, a fumaça dos cigarros... e como interpretar uma coisa dessas? Só nos resta sentir e o que tornará isso mais interessante é que cada um sentirá da sua maneira, conforme ele vê ou sente o asfalto, os pássaros e os cigarros. As teorias, as conversas, as interpretações, são todas tentativas de explicar esse sentimento, não as julgo erradas, eu sempre que possível faço isso, é até um exercício para entender melhor estes sentimentos. Mas the answer is blowin´ in the wind, e o vento já passou, a gente só olha pelo retorvisor e sente um vazio no peito. Por isso, fumar um cigarro olhando o disco se movimentar na vitrola, calmamente junto com a melodia, é igual (ou melhor), que tragar aceleradamente em uma mesa de bar, atormentado por aditivos noturnos tentando conversar um outro que "Desire" é melhor que "Highway 61". São tentativas, são interpretações, pessoais, interpessoais, chapadas, ordenadas; são sentimentos, são movimentos internos. É apenas uma canção, um som dançando em nossos ouvidos, mudando gerações, fazendo pessoas entrarem ou sairem do buraco. Este é Bob Dylan.

Mas nessa confusão toda de sentimentos, de busca por explicação ou de tentar se aproximar do cara, acredito que uma coisa está certa: Bob Dylan traduz a metáfora da vida. Assim como outros artistas também o fazem muito bem (Julio Reny, no Brasil; Johnny Cash, lá fora...), assim como outras formas artísticas também fazem, assim como o próprio futebol representa uma metáfora da vida, nos campos tortuosos e sujos de várzea onde alguns talentosos se sobressaem aos esforçados e nobres zagueiros. A metáfora é essa, a vida não é fácil, não é um gramado verde limpo e liso, é um campo esburacado, com sinais de uma guerra, é a guerra vista do front. E o cara traduz isso, o cara saca essa metáfora e amplifica a guitarra pra fazer isso, ou simplesmente senta com um violão acústico e uma harmônica. As mudanças de estilos, as trocas de sonoridades, são adaptações, adaptações que sua alma faz ao mundo que engole asfalto lá fora. Não se muda o mundo com uma canção, então não há o que insistir no mesmo erro. A metáfora está na nossa frente o dia todo, nos metrôs lotados, nos ônibus pegando fogo, e alguém precisa armazenar isso nas nossas telas da vida, alguém precisa botar a cara a tapa. Ser o Judas e ser o Cristo, ao mesmo tempo.

Texto originalmente publicado no blog http://thesadparadise.blogspot.com/