terça-feira, 5 de agosto de 2008

Alguma Puta Velha de San Pedro...


Este é mais um texto do meu amigo Diego Quadros, exímio contador de histórias. Desta vez, ele se debruça sobre a belíssima trilha dylanesca para o filme "Pat Garret & Billy the Kid" de Sam Peckinpah. Abaixo o relato dele:

Quando conheci o álbum Pat Garret & Billy The Kid, do Bob Dylan, eu ainda não tivera a oportunidade de assistir ao excelente filme homônimo de Sam Peckinpah. Entretanto, eu lembro que colocava o disco pra tocar durante a noite, pouco antes de dormir, e, de olhos fechados, me sentia sendo diretamente remetido àquele mundo árido, povoado de personagens cruéis e duros, onde as pistolas ditavam as regras e o sangue jorrava em abundância, podendo inclusive ouvir o zunido das balas passando rentes ao meu ouvido.

Ainda na primeira faixa, Main Title Theme (Billy), com aqueles acordes secos de violão, o compasso pertubador feito pela meia-lua e o solo que age como um narrador contando uma emocionante história de aventura ocorrida em tempos remotos, eu já era capaz de visualizar um Pat Garret envelhecido levando uma saraivada de tiros sobre sua carroça, vindo a despencar já sem vida no chão arenoso da desértica fronteira com o México. Eu podia me sentir testemunha ocular dos assassinatos de Billy The Kid, estando tão perto a ponto de escutar alguém gritando “William Bonney acaba de matar mais um homem!” e um dos assistentes do xerife, sob a mira da espingarda empunhada pelo fora-da-lei, sussurrando: “É... e ele vai me matar também!” Eu podia tocar no cadafalso erguido para suspender o corpo do jovem pistoleiro durante a execução por enforcamento.


Eu podia tudo isso porque, ao ouvir esse maravilhoso e não-convencional álbum, eu me sentia lá... e, de fato, eu estava lá!

Cantina Theme (Workin’ For The Law) me transportava a um saloon onde apostadores mal-encarados jogavam pôquer e putas de seios caídos ficavam em volta fazendo a corte. Ou então me conduzia a alguma cantina de um vilarejo isolado no meio do deserto, em que um caçador de bandidos era homem suficiente para tomar uma garrafa de tequila barata em meio a um grupo de bandoleiros assassinos foragidos. A percussão de Cantina Theme, aliás, nos traz a sensação de que está antecipando um daqueles momentos de tiroteio desenfreado, aquelas cenas de massacre onde nós temos certeza de que a única verdade é que a maioria não sairá daquela espelunca vivo. Eu ainda hoje, quando escuto essa música, sou capaz de imaginar um close de olhos frios e atentos encarando o oponente, alertas a qualquer movimento em falso.

Tensão maior que essa, porém, eu sinto já nos primeiros segundos de Billy 1, quando a gaita tocada por Dylan entra rasgando o espírito, com um tom de agonia e desespero de partir o coração de qualquer espectador/ouvinte. Chego a ficar angustiado! Então o menestrel do oeste selvagem resolve ir além e dispara com sua voz característica um aviso ao herói: “Há armas do outro lado do rio mirando em você... um homem da lei no seu encalço louco pra te pegar... caçadores de recompensa dançando ao seu redor... Billy, eles não gostam que você esteja tão livre!” Como não se identificar logo de cara com um personagem desses? Quem nunca se sentiu numa situação dessas antes, ainda que metaforicamente?

River Theme, por sua vez, me lembra um cortejo fúnebre... mas também poderia ser uma señorita mexicana – ou mesmo uma índia – lavando roupas na margem do rio, cantarolando melodias monossilábicas nostálgicas... “Lá–rá... lá-lá-lá-lá...” É uma canção com capacidade de nos transmitir sua intenção emocional tão forte e saliente quanto Turkey Chase. Escutem esta música e tentem imaginar uma cena onde alguns ladrões-de-gado baratos se dedicam a um pequeno momento de lazer tentando caçar perus selvagens montados em seus cavalos... tentem perceber a descontração e o divertimento dos personagens... é fácil, não?

Knockin’ On Heaven’s Door é um caso à parte. É o único hit do disco, sendo conhecido por um público tão vasto que ultrapassa as barreiras espaço-temporais. Como é do conhecimento de todos, tem uma letra belíssima que se torna ainda mais poética quando inserida no contexto da película de Sam Peckinpah, onde vemos um xerife Baker ferido mortalmente, cambaleando em direção ao rio para sentar numa pedra com a mão por sobre o ferimento e contemplar a beleza da vida, saciando o seu desejo de partir navegando para bem longe em seus últimos momentos antes da morte.


Final Theme não poderia ser mais apoteótica e tocante... é como o encerramento de uma fantástica história que acabamos de ouvir de alguém que esteve lá e fez parte de tudo... alguém que narra os fatos com tamanha veracidade e precisão que simplesmente não tem como não nos sentirmos um dos personagens da aventura... é o desfecho de um conto sobre homens destemidos e indomáveis... sobre valores como honra, amizade, justiça e coragem... é a música que nos coloca frente a frente com um Billy The Kid atingido no peito por um tiro de rifle... diante de um Pat Garret remoído pelo remorso e pela culpa de ter matado o seu melhor amigo, sentado em silêncio absoluto sobre uma cadeira de balanço na varanda de um casebre de madeira.... é a trilha que fala sobre um amanhecer lúgubre e sombrio no meio do nada... sobre uma história sem final feliz nem triste... apenas um final...

E então Billy 4 entra para nos resumir toda essa jornada fantástica que acabamos de vivenciar na intimidade de nossa imaginação... como eu afirmara antes sobre esse disco ímpar e singular, eu fechava os olhos com os fones a todo volume e me sentia parte daquela fantasia de garoto... eu era o próprio Billy, ouvindo um Dylan preocupado me alertando de que Pat Garret estava no meu encalço e já tinha minha pista; pedindo para que eu não virasse as costas para ele; falando sobre os caçadores de recompensa e os pistoleiros neófitos tentando me encurralar; mandando que eu ficasse atento a qualquer ruído, que poderia se transformar num trovão vindo do tambor de suas armas; lembrando as mulheres que eu matei em El Paso ou comprei em Santa Fe; perguntando como eu me sentia sendo caçado pelo homem que era meu amigo...

Enfim, um Dylan atencioso, citando alguma puta velha de San Pedro e se lamentando por Billy estar tão distante de casa durante seu Grand Finale numa viela escura de Tularosa ou talvez no Vale do Rio Pecos...

terça-feira, 29 de julho de 2008

Simplesmente "A Banda"


Um grupo que se intitula apenas de "a banda" chama a atenção logo de cara. Com um nome simples e, ao mesmo tempo pretensioso - afinal se chamar de "a banda" pode soar por demais arrogante - The Band era um quinteto no qual quatro de seus integrantes eram originários do Canadá e um americano, que marcou o mundo da música nas décadas de 60 e 70. Seu primeiro disco, “Music from Big Pink”, chamou a atenção por vários motivos: num ano - 1968 - em que os jovens usavam cada vez mais roupas psicodélicas e colocavam a guitarra em primeiro plano, esses cinco homens se vestiam com roupas do início do Século XX e apostavam em arranjos tão sofisticados e delicados que pareciam uma ofensa. Mas a Band já era muito calejada. Juntos desde 1961, quando ainda eram conhecidos como The Hawks, o grupo já tinha uma longa estrada como grupo de apoio de um verdadeiro mito - Bob Dylan. Junto dele, viveram alguns dos mais belos momentos da história e gravaram discos antológicos. Dylan não participou de “Music from Big Pink” - ao menos oficialmente - mas deixou sua marca em algumas parcerias nas composições e na bela capa. De quebra, esse disco é considerado - atenção, fãs de listas!!! - uma das 10 mais belas estréias do rock. Uma coisa muito, muito fina. E se você ficou curioso ou achando que isso tudo muito pretensioso, bem... espere até ouvir The Band. Afinal, eles são A BANDA, certo?

Muito antes desses cinco cavalheiros mostrarem toda sua classe e capacidade em sua lendária carreira, é preciso voltar ao passado de Robbie Robertson, Rick Danko, Richard Manuel, Garth Hudson e Levon Helm, quando em 1958 nascia The Hawks.O The Hawks era, na verdade, uma banda de apoio para o cantor Ronnie Hawkins, um cantor de rockabilly que começava a ficar famoso, mas ainda não tinha alcançado um grande sucesso. Em 1958, Ronnie contratou um jovem talento chamado Levon Helm, nascido em 26 de maio de 1940, em Marvell, Arkansas. Apesar da pouca idade - 18 anos - Levon já tinha passado por algumas bandas locais e tocava guitarra, baixo acústico e bateria. E foi como baterista que entrou para a banda de Hawkins.

Mas Ronnie estava insatisfeito com sua carreira. Ele percebeu que se ficasse no sul dos Estados Unidos seria apenas mais um a cantar rockabilly. Foi então que o guitarrista dos Hawks, Jimmy Ray "Luke" Paulman entrou em contato com Conway Twitty, que fazia vários shows bem mais ao norte, precisamente no Canadá. Twitty tinha um homem forte lá, Coronel Harold Kudlets, que conseguia apresentações por todo país e até em algumas cidades do norte dos Estados Unidos, como Detroit e Buffalo. E Ronnie Hawkins and the Hawks perceberam que lá poderiam tornar-se algo grande. Assim, mudaram para Toronto, onde realmente eram considerados a grande sensação com seu rockabilly energético.Em 1959, Ronnie Hawkins lança seu primeiro disco que levava apenas seu nome e havia gravado em abril. Com 12 músicas, o disco marcou a estréia de Levon Helm na banda. Além dos dois, Jimmy "Left" Evans tocou baixo; Jeannie Grennie fez backing vocals; Willard "Pop" Jones tocou piano e Jimmy Ray "Luke" Paulman, tocou todas as guitarras. O produtor foi Joe Reisman.Com um disco lançado, aos poucos, o Hawks foi sofrendo mudanças em sua formação. Após Helm, outro futuro membro do The Band a entrar no grupo foi o guitarrista Robbie Robertson. Nascido no dia 5 de julho de 1943, em Toronto, Robbie era ainda menor de idade - 17 anos -, quando começou a tocar com Ronnie. E assim como Levon, Robbie já havia tido sua experiência no meio musical, integrando bandas como Robbie and the Robots, Thumper and the Trambones e Little Ceasar and the Consuls. Inicialmente assumiu o baixo e foi apadrinhado pelo então guitarrista Fred Carter Jr.

Em 1960, Ronnie Hawkins lançaria outro disco, “Mr. Dynamo”. Levon Helm começava a ganhar destaque escrevendo quatro canções - sendo uma delas sozinho: "Hay Ride", "Baby Jean" e "Southern Love" - essas três em parceria como Roonie e com Magill. Sua composição própria era "You Cheated (You Lied)", que chegou ao 12º lugar na parada dos Estados Unidos. Nesse disco Robbie Robertson já apareceria pela primeira vez como compositor. Robbie dividiu com Magill e Hawkins a autoria de "Hey Boba Lou" e "Someone Like You", embora não conste nos créditos como músico, pois ainda não havia sido nomeado um membro oficial dos Hawks. Nesse disco o baixo ainda era de Jimmy "Lefty" Evans, e Ronnie havia adicionado Fred Carter Jr. como segundo guitarrista.


No final de 1960, entraria o terceiro futuro membro da The Band, Rick Danko. Nascido em 28 de dezembro de 1943, em Simcoe, Rick tocava em grupos locais desde os 12 anos e havia ficando maluco com a energia do grupo após assistir uma apresentação. Rapidamente assumiria a guitarra-rítimica e depois o baixo. Em 1961 é a vez de Richard Manuel entrar no grupo. Nascido em 3 de abril de 1943, em Stratford, Manuel também havia tocado em uma banda local em sua cidade, os barulhentos Rockin' Revols. Richard era um vocalista de origem, mas se descrevia como um "pianista rítmico", capaz de nada muito complicado, mas bom o suficiente para arranjar um espaço nos Hawks.E, finalmente, entrou o último membro que faltava do The Band. E o mais velho de todos. Garth Hudson era um músico de grande habilidade e que entrou para o grupo com 24 anos (nasceu em 2 de agosto de 1937, em London, Canadá. Apesar de ser um grande pianista, Hudson era também hábil com instrumentos de sopros, como o sax tenor e exercia o papel de líder no grupo Paul London and the Kapers e haviam gravado alguns compactos em 45 rotações em Detroit, pelo selo Checkmate. Quando Levon Helm tratou rapidamente de pedir sua contratação pela sua versatilidade: "ninguém tocava piano e instrumentos de sopros como Garth. Quando Ronnie finalmente o trouxe para junto de nós, começamos, de fato, a soar como um grupo profissional.”

Mas a única maneira de manter Garth na banda era o contratando e pagando por isso, já que sua família não aprovava que Garth vivesse com uma banda de rock and roll. A saída foi contratá-lo como professor de música para seu grupo e membro dos Hawks. Ronnie já atravessava um período de baixa em sua carreira, apelando de todas as maneiras para conseguir algum sucesso. De 1959 a 1963 lançou alguns álbuns e compactos, sempre com Helm na bateria, até todos eles serem demitidos por Ronnie em 1964.No mesmo ano, eles começam a tocar com o nome de Levon Helm Sextets e conseguiram mais dinheiro do que haviam tido com Ronnie. Além dos cinco integrantes do Band, constavam o cantor Bruce Bruno e o saxofonista Jerry Penfound. Em seguida eram Levon and the Hawks e estavam tocando pelo Missouri, Arkansas, Oklahoma e Texas, nas fraternidades locais, festas de escolas, além de vários shows pelo Canadá.

Nesse período gravaram o compacto; "Leave Me Alone" e "uh-Uh-Uh" para o selo Ware, de Nova York, em 1964, com o nome de Canadian Squires. Em 1965 gravaram "The Stones I Throw" e "He Don't Love You (And He'll Break Your Heart)", para a Atco, em 1965 e os lançaram como Levon and the Hawks. Nesses discos, tanto Bruce como Jerry já estavam fora do grupo.As quatro canções marcavam algumas inovações: todas eram escritas por Robbie Robertson, que começava a mostrar um grande talento como compositor e o som estava se aproximando da música negra. Robbie conta que estava muito influenciado pelos Staple Singers: "quando escrevi "The Stones I Throw' eu estava tremendamente influenciado pelos Staples Singers. Eu considero Pops Staples um dos melhores cantores que já existiram. Ele parece um trem quando canta e tem uma qualidade única, de poder sussurrar, que me deixava maluco. Era uma canção fora do nosso contexto quando a gravamos e só fazia sentindo quando eu falava no grupo que havia me inspirado.”

A virada na carreira

Em 1965, no entanto, o grupo recebeu um convite que iria mudar radicalmente sua vida: através de uma secretária de Toronto chamada Mary Martin, que trabalhava para o empresário Albert Grossman, eles foram sugeridos para acompanhar Bob Dylan em sua entrada no rock elétrico, quando esse deixou suas composições mais folks e abraçou a guitarra elétrica. Mas Dylan não chamou todos os membros do Hawks para tocar com ele, de início. Primeiro, convidou Robbie Robertson para dois shows: um em Forest Hills, em Nova York e depois em Los Angeles, no Hollywood Bowl. Robbie confessa que não gostou nem um pouco do som que o baterista de Dylan tirava e sugeriu o nome de Levon. Dylan aceitou a sugestão e junto com o pianista Al Kooper e o baixista Harvey Brooks fizeram as duas primeiras apresentações de Dylan em formato elétrico depois da famosa e lendária vaia que tomou no Newport Folk Festival, quando tocou acompanhado de Al Kooper e da Paul Butterfield Blues Band.


Dylan gostou tanto de Robbie e de Levon que os convidou para integrar sua banda que faria vários shows pela América e pela Europa. Os dois argumentaram que isso seria impossível sem os demais integrantes do Hawks. A saída foi realizar alguns ensaios em setembro de 1965, em Toronto, para em seguida, saírem pelo mundo.Os Hawks acabaram se mudando para Nova York, local de residência de Bob Dylan e tiveram um começo difícil, já que Dylan, em suas apresentações, era sistematicamente vaiado por seus antigos fãs, que o acusavam de ter se vendido e abandonado o purismo folk para fazer sucesso. E as vaias eram tão intensas, que Levon Helm, após alguns shows, não suportou mais a tensão e desistiu. "Levon dizia que não queria mais aquilo, que não conseguia mais sentir prazer. Eu disse que ainda descobriríamos nosso som próprio, mas que isso levaria algum tempo, e que, enquanto isso, iríamos tocando e ganhando dinheiro", disse Robbie, que não convenceu, no entanto, seu colega a voltar ao grupo.

Após a excursão, Dylan resolveu se refugiar na cidade de Woodstock para começar a trabalhar em um documentário da viagem à Europa. Rick Danko e Richard Manuel começaram a viajar regularmente à cidade para auxiliar no documentário. E durante essas viagens, Danko achou uma casa estranha, que ficava em um lugar silencioso. A casa era conhecida como Big Pink e acabaria sendo o lar do grupo e, até de Dylan, por um bom tempo. Richard Manuel, Rick Danko e Garth Hudson mudaram-se imediatamente, enquanto Robbie mudou-se para a vizinhança. O local era como a realização de um sonho: ampla, longe da mídia e do público, com muito espaço para ensaios.Ali, Dylan e os quatro músicos remanescentes do Hawks trabalhavam febrilmente, compondo, ensaiando e gravando no porão da casa em um gravador de dois canais. Anos depois, essas gravações, de 1967, sairiam em forma de um antológico disco duplo, em 1975: The Basement Tapes.

A convivência com Dylan faria a banda melhorar em vários aspectos, principalmente nas letras. Robbie conta que no começo não dava muita importância para o aspecto poético de suas canções. "Mas eu tinhas minhas influências - rock and roll, country e blues e era tremendamente influenciado por cantores como Curtis Mayfield e tocava as músicas deles para Bob e dizia 'ouça a voz, o clima, é isso que devemos fazer'. Todo aquele período foi extremamente rico para nós. Ficávamos horas e horas falando de nossas influências."Aos poucos, o som do grupo ia mudando, deixando o rock mais cru dos tempos com Ronnie Hawkins e tornando-se mais elaborado.

"Enquanto eu toquei com Ronnie e com Dylan, eu tocava guitarra de maneira bem alta, raivosa e quando comecei com Ronnie não havia ninguém que soasse assim. Havia apenas Roy Buchanan e eu. Eu era um soldado da guitarra. Quando eu comecei a tocar guitarra era como uma vingança, tocava com raiva. Eu treinava diariamente, cada vez mais e mais e ninguém nesse mundo treinou mais do que eu treinei naqueles dias. Eu era jovem e com a atitude correta. Minha guitarra soava como uma ejaculação precoce. Aos 20 e poucos anos eu tocava com Dylan centenas de vezes os mesmos solos e queria morrer por causa disso. Por isso, quando resolvemos encontrar nosso som, eu queria algo completamente novo. Então pensei que quando começássemos o nosso disco, não iria fazer nenhum solo de guitarra no disco inteiro. Iria tocar apenas riffs. Também queria encontrar um som único para a bateria, um som especial para o piano. Eu não queria vocais gritados, queria vozes sensíveis em que você pudesse ouvir a respiração e elas entrando. E esse tipo de vocalização demora a ser encontrando. Eu ouvia nos discos da época uma voz anulando a outra e queria que cada uma entrasse devagar, que provocasse uma reação como os Staples Singers. Mas, por causa do fato de sermos todos homens, isso teria um efeito diferente. Todas essas idéias vinham à minha mente.”

E para montar todo esse quebra-cabeça, onde ninguém dentro do grupo era mais importante do que o outro, faltava um componente essencial: Levon Helm.O grupo - já rebatizado como The Band - já tinha algumas sessões em estúdios agendadas através de Albert Grossman. Então, Danko ligou para Levon chamando-o para integrar novamente a Band. "Disse a ele que havia algumas centenas de milhares de dólares nos esperando e perguntei se ele não queria compartilhar todo esse dinheiro conosco. Ele respondeu que estaria no próximo vôo", lembra Danko.Mas antes de Levon voltar à The Band, o grupo tinha marcado uma sessão a fim de gravarem duas canções, que foram produzidas por Grossman. As sessões foram um fracasso e Robbie concluiu que eles não soavam nada com aquilo que ele imaginara.Com o grupo insatifeito com a produção de Grossman, resolveram procurar um outro produtor e foram atrás de John Simon. Simon lembra que a primeira vez que viu (e ouviu) a The Band estava ocupado trabalhando com Peter Yarrow (do trio folk Peter, Paul & Mary) fazendo uma trilha sonora de um filme chamado You Are What You Eat, na casa de Howard Alk. "Começamos a ouvir um som das ruas e quando abrimos a janela vi quatro caras vestidos com aquelas roupas totalmente estranhas, com instrumentos malucos cantando parabéns, pois era aniversário de Howard." Após alguns encontros, já com Levon, resolveram trabalhar.

Assim, no dia 10 de janeiro de 1968, todos foram para Nova York para os estúdios da A&R e gravaram algumas músicas: "Tears of Rage", "Chest Fever", "We Can Talk", "This Wheel's On Fire" e "The Weight".Simon disse que o estúdio tinha uma acústica maravilhosa e que gravaram em quatro canais: dois deles para gravações dos instrumentos "ao vivo" - incluindo vocais - outro canal para os metais e o quarto para voz e percussão.Robbie estava particularmente interessado em encontrar um som para a bateria e, entre outras coisas, sugeriu colocar um pedal de wah-wah na pele da bateria para dar um som poderoso, como de um trovão. A idéia acabou gerando o que tanto Robbie desejava - um som único, particular e que seria uma das marcas da The Band.Enquanto gravavam, Grossman resolveu arranjar um melhor contrato para os rapazes e sugeriu que eles se mudassem para a Capitol Records e voassem para Los Angeles. Grossman afirmou que em Los Angeles eles teriam um estúdio melhor, de oito canais e que o clima de Los Angeles, em janeiro, era mais ameno do que de Nova York. Após aceitarem o argumento, pegaram as cinco canções gravadas em Nova York nos estúdios da A&M e voaram para a Califórnia.

As sessões correram da melhor maneira possível e a Band conseguia finalmente encontrar o som que tanto sonhavam. O grupo resolveu inovar desde o início. Foi idéia de Robbie abrir o disco com a lenta e triste "Tears of Rage", composta por Richard Manuel e Bob Dylan e cantada pelo primeiro. Nunca um grupo de rock havia colocado uma música lenta na abertura do disco. A idéia de Robbie era fazer o grupo soar de maneira tão original desde a primeira faixa. A segunda canção seria "To Kingdon Come", uma das raríssimas vezes em que o guitarrista assumiu os vocais."Eu estava influenciado ao mesmo tempo por Luís Buñuel (diretor de filmes espanhol), Akira Kurosawa (diretor japonês) e por John Ford. Eu estava sedento por cultura pois não ia à escola desde meus 16 anos e comecei a ler e ver esses tipos de filmes. Acabei me aprofundando dentro dos mitos europeus, nórdicos, etc.."Mas, entre tantas canções, uma delas se destacou e virou um marco na vida do grupo: "The Weight". Inspirada no diretor espanhol, Robbie conta um pouco sobre como a escreveu: "Buñuel escreveu muito sobre a impossibilidade da santidade, sobre pessoas tentando serem boas. A canção veio daí. Pessoas como ele podem fazer um filme falando dessas conotações religiosas, mas sem passar uma imagem religiosa. Nos filmes dele, há muitas pessoas tentando ser boas e descobrindo que é impossível ser bom.”

"'The Weight' começa com alguém dizendo 'você pode me fazer um favor e dizer alô a uma pessoa? Oh, você está indo para Nazaré, a terra da fábrica das guitarras Martin? Então me faça esse favor quando estiver lá' e o cara vai e uma coisa acaba levando a outra coisa até que ele percebe que não sabe mais o que está acontecendo e que precisa dar um oi para alguém que ele não conhece. Isso é bem Buñuel. Quando eu escrevi a canção quis criar algo como um mito da América. A Nazareth que pensei, era a cidade da Pennsylvania e não Nazareth de onde veio Jesus Cristo. Eu nem sei porque deram esse nome à cidade, mas tentei criar uma história em torno disto."Levon Helm disse que a canção possui alguns do personagens favoritos de todo o grupo: Luke é Jimmy Ray Paulman, dos Hawks; Young Anna Lee é Anna Lee Williams do Turkey Scratch e Crazy Chester é um cara que vinha de Fayetteville todos os sábados vestindo um daqueles cintos em que você coloca espingardas na cintura."Para fechar o disco, escolheram uma composição até então inédita de Bob Dylan, "I Shall Be Released", com um belo tratamento vocal de Manuel, Danko e Helm.

Quando foi lançado em 1968, “Music from Big Pink” não alcançou o sucesso esperado. Primeiro, porque o nome do grupo confundia as pessoas. Depois porque eles teimavam em usar nas fotos do álbum roupas soturnas e conservadoras demais para o padrão da época. Para contrastar, a capa do disco era um desenho feito por Bob Dylan. As fotos, que acabaram sendo uma marca registrada do grupo, foram tiradas pelo desconhecido fotógrafo Elliott Landy, que foi escolhido da maneira mais inusitada possível: "eu perguntei quem era o pior fotógrafo de toda Nova York porque queria essa pessoa para nos retratar. Ninguém soube me dar um nome, mas me disseram que havia esse tal de Elliot que trabalhava para uma revista furreca chamada RAT, disparada a pior de todas. Acabamos chamando-o e ele fez um trabalho incrível", afirmou Robbie.Para aumentar o estranhamento, na contra-capa do disco aparece a famosa casa rosa. O disco teve uma carreira modesta nas paradas de sucesso, alcançando apenas a 30ª posição nas paradas e isso porque George Harrison e Eric Clapton se derramarram em elogios ao trabalho. Clapton disse que era seu disco favorito e um dos mais importantes de todos os tempos. Ainda assim, "The Weight" foi apenas o número 63 nas paradas na América e 21 no Reino Unido.


Em agosto de 2000, o disco foi relançado em uma versão remasterizada, com nove faixas a mais incluindo outtakes da primeira gravação com Grossman, como é o caso de "Ferdinand The Imposter", que foi incluída mais pelo valor histórico do que musical.Ironicamente, "The Weight" faria mais sucesso nas vozes de Jackie DeShannon e na de Aretha Franklin (incluindo uma canja de Duane Allman na guitarra), ambas gravadas em 1969 e inferior à original. Isso, contudo, serviu para popularizar ainda mais o disco, tido como um dos grandes lançamentos da história do rock e peça obrigatória para quem quer conhecer a história da música.

Em 1969 a banda apresentava seu novo disco, chamado simplesmente “The Band”, recheado de belíssimas canções, como “Up On Cripple Creek”; “Rag Mama Rag”; “When You Awake” e “The Night They Drove Old Dixie Down”, entre outras. A seguir, em 1970, viria “Stage Fright”, terceiro rebento do quinteto. Talvez o disco mais pessoal da banda, focado em seus demônios internos e na angústia diante do sucesso obtido.


Seguiram-se os álbuns “Cahoots” (1971); “Rock of Ages” (1972), um show memorável em Nova York, o qual, ao final, sem nenhum anúncio ou publicidade, contou com a participação-surpresa do legendário Bob Dylan; “Moondog Matinee” (1973); “Northern Lights – Southern Cross” (1975) e “Islands” (1977).
Em novembro de 1976, a banda reuniu seus amigos para celebrar seu concerto de despedida, no Winterland Ballroom em San Francisco. “The Last Waltz” seria o show de "adeus" da banda, após de 16 anos fazendo turnês. The Band teve a compania de mais de uma dúzia de convidados especiais, incluindo Eric Clapton, Neil Diamond, Bob Dylan, Joni Mitchell, Van Morrison, Ringo Starr, Muddy Waters e Neil Young.
O evento foi filmado pelo cineasta Martin Scorsese e transformado em um documentário, lançado em 1978. O filme destaca performaces do show, cenas gravadas em estúdio e estrevistas com os membros da banda.

O Fim
The Band acabou se tornando uma instituição da música norte-americana e em 1986 os fãs foram devastados pela notícia do suicídio de Richard Manuel, que no dia 4 de março se enforcou em um quarto de motel em Winter Park, na Flórida, numa excursão que marcava a volta da formação original. A Band, ou o que restou dela, seguiu tocando até os anos 90, com vários músicos convidados, sem Manuel e Robertson, que recusou-se a participar do projeto de continuidade, dizendo-se fiel aos ideais do Last Waltz.

Discografia

1964-1965:
Uh-Uh-Uh / Leave Me Alone (compactos de 1964, como The Canadian Squires)
The Stones I Throw / He Don't Love You (compactos de 1965, como Levon and the Hawks)
Go Go Liza Jane / He Don't Love You (relançamentos em 1968, como Levon and the Hawks)
1968-1978:
Music From Big Pink (1968)
The Band (1969)
Stage Fright (1970)
Cahoots (1971)
Rock of Ages (live, 1972)
Moondog Matinee (1973)
Northern Lights - Southern Cross (1975)
Islands (1977)
The Last Waltz (ao vivo/estúdio, 1978)
1993-1998:
Jericho (1993)
High On The Hog (1996)
Jubilation (1998)
Álbuns com Bob Dylan:
Planet Waves (1974)
Before the Flood (1974)
The Basement Tapes (1975)


Fonte principal: Mofo http://www.beatrix.pro.br/mofo/

terça-feira, 15 de julho de 2008

Fã numero 1


Todo grande ídolo tem sua legião de fãs e com Bob Dylan não seria diferente. A maioria nutre pelo artista uma admiração silenciosa, mas alguns extrapolam esta condição e fazem do ídolo uma verdadeira obsessão. É o caso, p. ex., do maluco A. J. Weberman, sobre quem já falamos aqui neste blog, que nos anos 70 atormentou a vida do Dylan, tornando-se um verdadeiro estorvo para ele e sua família, quando se mudaram para Nova York.

Outro que pode ser considerado um ardoroso fã do Bob, por sorte não é um psicopata que vive azucrinando a vida de seu astro favorito, é Joel Gilbert, que fundou uma banda tributo ao ídolo, denominada Highway 61 Revisited, que segundo ele próprio é a única banda no planeta criada em homenagem a Bob Dylan. Gilbert é também cineasta e montou uma empresa chamada Highway 61 Entertainment Production que já produziu alguns filmes abordando a vida do mestre, disponíveis em DVD.

Joel é um sujeito baixinho e um tanto quanto franzino. Tudo bem que de bobo ele não tem nada e capricha bastante no visual para ficar com uma estampa parecida com o Bob. O cara por sua vez também extrapola a relação fã-ídolo e no caso dele, faz disso uma profissão. Nessa brincadeira de sair pelos EUA, em turnê com sua banda tributo, imitando o Dylan e se apresentando em bares e casas de shows e ainda, principalmente, produzindo e dirigindo os DVDs, o homem arrecada uns bons trocados.

Os filmes são bacanas, bem produzidos e trazem algumas histórias e recordações de pessoas que fizeram parte da trajetória do Bob, ao longo de todos estes anos. Embora sejam todos eles “não autorizados” pelo ídolo e portanto sem dispor de material original do artista, não são apenas produtos caça-níqueis, feitos apenas para engordar a conta bancária do seu autor, ainda que também sirvam a esse propósito.



“1966 World Tour – The Home Movies (Through the Câmera of Dylan´s Drummer Mickey Jones)”, de 2003 é uma viagem àquela celebrada turnê de 1966, através dos filmes caseiros do bateirista Jones. O DVD traz algumas entrevistas com Johnny Rivers e Trini Lopez, com quem Jones havia trabalhado e algumas boas imagens daquela turnê do Dylan, pela Europa e Austrália.





“Bob Dylan World Tours 1966-1974 (Through the Câmera of Barry Feinstein)”, de 2005, é outra viagem pelas lendárias turnês de Dylan e The Band, sendo que desta vez, através de fotos e depoimentos do fotógrafo Bary Feinstein, que acompanhou a trupe naquelas ocasiões. Gilbert visitou Woodstock, investigando a vida reclusa do Bob antes do retorno deste à estrada, fazendo inclusive uma parada na famosíssima Big Pink, de onde saíram as não menos famosas “basement tapes”. Gilbert ainda realiza algumas boas entrevistas com o lunático A. J. Webermann e também com o cineasta D. A. Pennebaker, o jornalista Al Aronowitz e o baterista Mickey Jones, que na turnê de 1966, substitui Levon Helm e tocou com a The Band, acompanhando Dylan. Este título tem edição nacional de boa qualidade e é facilmente encontrado em boas lojas do ramo.




O terceiro e último DVD tributo do Joel Gilbert é o melhor deles: “Rolling Thunder and The Gospel Years – Bob Dylan 1975-1981” conta com participações de Scarlet Rivera; Bruce Langhorne; Ramblin´ Jack Elliot e Rob Stoner, traz ainda ótimas entrevistas com os músicos e também com Jacques Levy e Rubin Hurricane Carter.




Pra não ficar só nos DVDs da Highway 61 Entertainment, vamos recomendar um outro, recentemente lançado no Brasil pela gravadora Coqueiro Verde, mais um a abordar os chamados “gospel years” do Bob. Trata-se de “Gotta Serve Somebody – The Gospel Songs of Bob Dylan”. Este documentário foi feito a partir de imagens captadas durante o “making off” do disco “Gotta Serve Somebody”, álbum indicado ao Grammy, que reuniu grandes astros do mundo gospel, interpretando músicas da fase cristã do Dylan. O DVD tem a participação de Aaron Neville; The Fairfield Four; Rance Allen, entre outros, além do próprio Dylan, cantando “When He Returns”, em 1980.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

The Other Side Of The Mirror


Cada época tem seus heróis. Cada necessidade tem uma solução e uma resposta. Algumas pessoas, a imprensa, as revistas, crêem as vezes que os heróis que os joves escolhem, ensinam o caminho a seguir. Eu penso que isto acontece porque existe uma necessidade. Este jovem homem surgiu de uma necessidade. Chegou aqui e se converteu no que é, porque havia coisas a dizer e a juventude queria expressá-las e queria dizê-las à sua própria maneira. Ele escutou, de alguma forma, a sua própria geração. Não necessito apresentá-lo, vocês o conhecem, ele é de vocês, Bob Dylan!

Com essas palavras, Bob Dylan foi apresentado numa das edições do Newport Folk Festival e é com elas que se inicia o belíssimo DVD “The Other Side of The Mirror - Bob Dylan Live At The Newport Folk Festival 1963-1965” do diretor Murray Lerner. O documentário traz o registro na íntegra das três apresentações do bardo naquele festival, realizadas nos anos de 1963, 1964 e 1965.

O DVD é simplesmente fantástico. Em minha opinião, o melhor registro em se tratando de Bob Dylan. Nele é possível acompanhar de perto a evolução do músico e principalmente sua transformação de cantador folk para o Dylan elétrico. Algo que se observa de maneira incontestável é o amadurecimento do artista e também como ele adquire extrema auto-confiança com o passar dos anos, conseguindo fazer com que sua simples presença envolva a todos com intenso magnetismo.

Lerner optou por uma apresentação crua dos registros que tinha em mãos. Nada de narração, entrevistas e etc. Pura e simplesmente as performances do músico nas três edições que participou e marcou para sempre a história do Festival. Dylan, que foi a maior estrela do evento, foi também seu algoz e carrasco ao derivar para a ruptura com os elementos tradicionais do folk, trocando os instrumentos acústicos com os quais normalmente se apresentava, por guitarras elétricas e muito barulho, causando enorme tumulto em 1965, ao subir ao palco ladeado por sua banda de rock, da melhor qualidade, diga-se de passagem, com destaque para o exímio guitarrista de blues, Mike Bloomfield.


O filme se divide em 3 partes, uma para cada edição do Festival. Os anos de 1963 e 1964 ajudaram a fazer de Bob Dylan o grande nome da música folk norte-americana, chamado por muitos de “a voz de sua geração”. Já a conturbada edição de 1965 flagra o exato momento da ruptura do Dylan com os tradicionalistas, o momento da transgressão. Só este registro já valeria o disco, mas além disto, o DVD oferece uma série de imagens de Dylan em algumas das mais marcantes atuações de seu início de carreira e um livreto de 20 páginas com ótimas fotos e uma breve histórico daquelas performances.

As diversas facetas do Dylan

AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 1)
O DISCÍPULO DE WOODY (1959-1964)
Discografia: Bob Dylan (61), The Freewheelin´ Bob Dylan (62), The Times They Are A-Changin´ (64), Another Side of Bob Dylan (64)

A América era risonha e franca, quase pura, quando o menino Robert Allen Zimmerman inventou o trovador Bob Dylan. Havia subúrbios estalando de novos em torno das cidades, uma TV em cada casa e dois carros em cada garagem, um supermercado - essa incrível e recente invenção do conforto urbano! - em cada esquina e muitos bambolês em todos os armários. Em breve haveria um homem no espaço e um jovem presidente na Casa Branca, falando em justiça social e igualdade racial e namorando Marilyn Monroe escondido - John Kennedy, é claro -, e uma vaga euforia pairava no ar. É certo que existiam coisas como a ameaça nuclear, esta estranha novidade que parecia, a princípio, uma bênção, e agora ninguém estava tão certo assim; e o muro de Berlim e a Guerra Fria, e a CIA tramando sem parar a derrubada de Fidel Castro. Mas dentro das fronteiras da América, uma prosperidade inédita, confortável e segura embalava sonhos de transformação, acordava espíritos aventureiros.


Robert Allen, filho dos donos de uma próspera loja de móveis e ferragens em Hibbing, Minnesota, achou que era um deles. O seu futuro provável - herdar a loja dos pais, como mandava a boa tradição familiar judia - parecia tedioso. Mais interessante era o futuro provável de um moderno trovador urbano, alguém que continuasse na nova década e na nova cidade a linhagem dos vagabundos poetas dos anos 30. Leadbelly, Woody Guthrie, Blind Lemon Jefferson, esses que ele ouvia em discos surrupiados às lojas dos negros, esses que ele ouvia em obscuros programas da madrugada, e em visitas secretas aos guetos.Em 1959, Robert Allen saiu de casa com as bênçãos dos pais para estudar na Universidade de Minnesota. Chegou lá com o nome de Bob Dylan e um outro passado - era um vagabundo, descendente de índios Sioux, sua família vinha do Oklahoma. Instantaneamente, ele havia redesenhado seu futuro.


Não ficou na universidade por muito tempo: um ano depois, já estava em Nova York, tocando violão e gaita nos bares do Village, compondo canções descaradamente parecidas com os talking blues de Woody Guthrie, mas um tanto mais loucas, repletas de visões apocalípticas, uma agilidade política mais feroz, mais adequada aos novos tempos. O Village Voice e o New York Times acharam aquilo muito chique, muito apropriado. John Hammond, um produtor e folclorista repleto de poder na gravadora Columbia, arranjou rapidamente um contrato.


Em 1961, aos vinte anos de idade, dois anos após ter-se inventado, Bob Dylan era o novo artista mais promissor e badalado dos Estados Unidos. É preciso lembrar que não havia Beatles nem Stones nem "rock" como conhecemos hoje. Havia um imenso vácuo de desejos não realizados, uma geração em busca de sua própria voz nessa era de prosperidade e esperança. Com seus talking blues revisitados, suas baladas de amor e fúria - "Blowin´ in the Wind", "Masters of War", "Don´t Think Twice, It´s Alright" , "The Times They Are A-Changin´" -, seu canto fanhoso, seu olhar de poeta e seus cabelos de maluco, mentiroso mas sagaz - ou seja, misterioso -Bob Dylan acabara de descobrir essa voz.

AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 2)
O TROVADOR ELÉTRICO
Discografia: Highway 61 Revisited (65); Bringing It All Back Home (65); Blonde ou Blonde (66); The Basement Tapes (gravado em 66/67, mas lançado apenas em 75)


Onde Dylan teria percebido a mudança? No vento, como o personagem de sua própria canção? Os tempos estavam acelerados, pesados. Não apenas formalmente, com a chegada triunfal do imprevisível - uma onda de bandas inglesas que estavam relendo, com grande sucesso, a mesma ancestral tradição popular americana sobre a qual ele mesmo se debruçava - mas em cada um desses monumentais percalços históricos que parecem se acumular, caprichosamente, sobre cada dia dos anos 60: o assassinato de Kennedy, o assassinato de Martin Luther King, a Guerra do Vietnã, a Guerra dos Seis Dias no Oriente Médio, a pílula, o ácido lisérgico, a minissaia, a pop art, Andy Warhol. O que um pobre garoto poderia fazer?


Em julho de 1965, a platéia do festival de Newport obteve a resposta. Dylan subiu ao palco com uma guitarra elétrica ao pescoço e, acompanhado por uma banda canadense - The Hawks, mais tarde rebatizada The Band, simplesmente -, atacou não as baladas folk que haviam feito sua glória, mas pesadas diatribes impulsionadas a eletricidade e fúria. A voz fanhosa rasgada num grunhido, num rosnar - "How does it feeeel? To be on your oooown..." ele rugia numa canção inédita, "Like a Rolling Stone". Os tempos, e Dylan, haviam definitivamente mudado.



Num veloz curto-circuito típico da era, a fusão folk rock que Dylan pegara no ar, inspirado por Beatles e Stones, voltava a Beatles e Stones e inspirava, por sua vez, Rubber Soul e Between the Buttons. O documentário Don´t Look Back, de D.A. Pennebaker, captura o flagrante deste novo personagem, o Dylan popstar: arrogante, egoísta, defensivo, trincado, partindo o coração da namorada Joan Baez (que ele trocaria pela futura mulher Sarah Lowndes em 66), agredindo e humilhando a imprensa. O álbum duplo Blonde on Blonde captura o outro lado - a musa elétrica de Dylan em sua melhor fase, cuspindo metáforas e visões sobre o ricochetear funky da Band e convidados.



Em julho de 66, dias depois de seu 25.º aniversário, um acidente de moto interrompe a até então irresistível decolagem de Dylan desde o dia em que saiu de casa, em 59. Aparentemente esbofeteado pelo destino, Dylan pára, some, recolhe-se a sua casa de Woodstock. Durante dois anos, boatos de todo tipo atravessam o novo clube do qual ele era sócio-fundador e presidente de honra: a novíssima elite rock. Dylan estaria desfigurado, ou drogado, ou louco, ou morto. Nada disso: trancado em Woodstock com a Band, Dylan estava se divertindo numa grande, longa festa íntima, como revelariam, anos depois, os Basement Tapes.


AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 3)
O CAIPIRA ESCLARECIDO
Discografia: John Wesley Harding (68); Nashville Skyline (69); Self Portrait (70); New Morning (70); Pat Garrett and Billy the Kid (73); Planet Waves (74)

O Dylan que emerge do retiro em Woodstock é, mais uma vez, uma síntese de sua geração - na virada dos trinta anos, casado e pai de família, violentamente confrontado com sua própria mortalidade, ele desacelera, medita, reavalia suas opções. Quando o sereno, semicountry John Wesley Harding é lançado, em 68, parece que Dylan encontrou, enfim, maturidade e serenidade, e está dando um passo adiante num ano ruidoso e explosivo, ano de revolução cultural na China, tumulto estudantil em Paris. Na verdade, Dylan estava apenas ganhando tempo, confessando sua perplexidade diante da quantidade de certezas destruídas que os últimos meses haviam acumulado em sua vida - exatamente como seu público faria durante a nova década, diante de coisas tão desconcertantes quanto a escalada da Guerra do Vietnã, Watergate, drogas pesadas e discoteca.


Sua primeira reação é voltar atrás, recuperar o fôlego - uma fórmula que, crise após crise, se mostra certeira no pop. John Wesley Harding e Nashville Skyline são discos marcados pela country music, pelo abraçar sem reservas da simplicidade, da rusticidade até. A voz está mais grave, mais doce, a lira está serena: o caipira esclarecido canta a vida e o amor sem pedir desculpas, e flerta com a possibilidade - que depois explorará quase até o delírio - da experiência religiosa como provedora de peso e significado.


Os outros discos são irregulares - embora a trilha de Pat Garrett oculte um clássico, "Knockin´ on Heaven´s Door" -, Dylan não se apresenta mais ao vivo, brinca de fazer cinema (em Pat Garrett). Sua vida parece ecoar suas canções: "Êi, baby, este será o fim?", ele tinha perguntado, uma vez. Não: novamente, era apenas o início.

AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 4)
O TROVADOR ELÉTRICO REVISITADO
Discografia: Before the Flood (74); Blood on the Tracks (74); Desire (75); Hard Rain (76); Street Legal (78)

Com uma fúria inigualada desde os tempos do festival de Newport, Dylan e a Band partiram para a estrada em 73. O resultado está captado admirávelmente em Before the Flood, um dos melhores álbuns ao vivo de todos os tempos. Como um grande balanço de sua vida e de sua obra, Dylan revê seu próprio repertório com vigor e espírito crítico, reinterpretando espetacularmente seus próprios cavalos-de-batalha e, assim, construindo a transição entre a sua geração - que se embalava confortavelmente nas diluições mornas do rock pomposo dos 70 - e a geração seguinte - que sonhava a imensa ruptura punk, ainda por vir.


Como que impulsionado pela energia nervosa dessa tour, Dylan atravessa os últimos anos 70 a bordo de uma espécie de nuvem magnética. Sem a Band, acompanhado por músicos diversos, quase semi-amadores, ele compõe longas e sinistras canções de amor, abandono e desejo, cada vez mais crípticas e cabalísticas, ocasionalmente comentando algum assunto político que, por acaso, atravesse seu campo de visão. É uma produção estranhamente brilhante, essa do Dylan que vê chegar a meia-idade sem ter encontrado ainda resposta alguma - irregular mas intrigante, angulosa. Os cripto-fãs que analisam cada milímetro de suas letras - uma degeneração da dizimada cultura sixties, como os dead heads e os neo-hippies - não chegam a perceber para onde Dylan está rumando. Emocionalmente à deriva, ele, que sempre pregou a ruptura, anseia agora pela ordem no caos. Qualquer ordem serve.


AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 5)
O CRENTE
Discografia: At Budokan (78); Slow Train Coming (79); Saved (80); Shot of Lore (81)

A ordem que Dylan encontra é a mais banal possível: em 1980, para espanto de fãs e não-fãs e delícia da imprensa, ele anuncia que acaba de se converter ao protestantismo fundamentalista, uma das formas mais simplistas de fé religiosa cristã que pode existir. Com um único gesto, Dylan não apenas renega todo o seu passado imediato como livre pensador secular mas também toda a sua história familiar como judeu.


A esterilidade pessoal que se esconde atrás dessa escolha aparentemente estapafúrdia revela-se nos discos deste período - os piores que Dylan conseguiu fazer em toda a sua carreira. Não existe mais o poeta alucinado, o trovador arrogante, o crítico inclemente, apenas um homem sozinho e infeliz, implorando a misericórdia de Deus por pecados reais ou presumidos - o pior deles, sem dúvida, o de ter renegado o próprio talento.

AS FACETAS DE BOB DYLAN (PT. 6)
O QUE VOLTOU DOS MORTOS

Discografia: Infidels (83); Empire Burlesque (85); Knocked out loaded (87); Oh Mercy (89)

Na capa de Infidels, Bob Dylan, ritual Yarmulk na cabeça, ajoelha-se no solo de Israel. Na primeira faixa do disco, o quase-reggae "Jokerman", sua voz madura, apaziguada, discorre lucidamente sobre as incontáveis armadilhas de um mundo tornado mais complexo, e mais cruel, pela mesma tecnologia que deveria simplificá-lo e salvá-lo. Na virada dos quarenta anos, na entrada de uma década que se revelaria uma estranha mistura de gozo e paradoxo - Aids e Reagan e MTV e computadores e satélites e mídia global dançando alucinadamente -, Dylan parece ter achado o olho do furacão. Robert Allen Zimmerman reconciliou-se afinal com sua criatura: ele, agora, pode ser o menino judeu de Hibbing, o bardo de Greenwich Village e o popstar recluso de Malibu numa única pessoa.


Os discos se deixam espaçar, calmamente. Dylan compõe como quem volta a andar depois de uma longa enfermidade debilitante, com cuidado. Uma turnê com Tom Petty, discípulo tornado comparsa, constrói vínculos com mais uma geração. Uma aliança com o produtor Daniel Lanois, que vem de outra formação e outra experiência, abre portas insuspeitadas em sonoridade e idéias: Oh Mercy é um triunfo. Quantas mortes e quantas vidas Bob Dylan ainda vai inventar?

(textos de Ana Maria Bahiana, e publicados originalmente na Revista Bizz de janeiro de 1990, gentilmente cedidos pela autora)

Bob Dylan clandestino


A incrível história do "álbum perdido" de Dylan, as lendas em torno dele e como The Great White Wonder inventou o mercado de discos piratas

Reportagem por Alexandre Matias (originalmente publicada na Revista Bizz e no site Trabalho Sujo)

"Consideramos o lançamento deste disco um abuso da integridade de um grande artista. Ao publicar material sem o conhecimento ou a aprovação de Bob Dylan ou da Columbia Records, os vendedores deste disco estão privando grosseiramente um grande artista da oportunidade de aperfeiçoar sua performance até onde ele crê em sua integridade e validade. Eles difamam o artista e fraudam seus admiradores ao mesmo tempo. Por estas razões, a Columbia, em conjunto com os advogados de Bob Dylan, seguirá todos os procedimentos legais para interromper a distribuição e a venda deste álbum."

Tarde demais. A nota divulgada pela gravadora de Dylan em setembro de 1969 sobre a existência de um disco chamado The Great White Wonder veio registrar, nos autos da própria indústria fonográfica, a existência de um registro sonoro inédito que começava a ganhar dimensões improváveis para o que deveria ser uma mera produção caseira. Vendido na casa dos milhares, o vinil duplo trazia dois momentos distintos de Dylan (doze canções gravadas em um hotel em 1961 e outras nove faixas de baixa qualidade acompanhado da mesma banda com quem excursionava, em 1967) e surgia imponente como aquilo que o editor da Rolling Stone, Jann Wenner, chamara de "o disco perdido de Bob Dylan", na capa da edição de 22 de junho de 1968. Na matéria, eram descritas treze canções que circulavam por meios alternativos, que comporiam um próximo álbum do contratado da Columbia Records. "O conceito de um disco coeso já está presente", escreveu, antes de clamar: "A fita do porão de Dylan precisa ser lançada."

"Havia uma enorme demanda por Dylan e ele não lançava nada", me explica Greil Marcus, uma das principais autoridades sobre o músico norte-americano. "Naquela época, um artista de seu porte não lançar nada por seis meses era algo improvável - que dizer do período de um ano e meio entre Blonde on Blonde (1966) e John Wesley Harding (1968). Neste sentido, os piratas preencheram a lacuna. Como aconteceu, haviam tantos lançamentos - sobras de estúdio, shows, músicas que nunca foram lançadas etc. - que constituem toda uma carreira à sombra - que Robert Polio recentemente construiu no livro Tin House".

Em menos de um ano, The Great White Wonder veio à tona; as primeiras cópias eram vendidas em Los Angeles e logo se replicaram pelo mundo. Mais do que compartilhar com o grande público gravações que já eram conhecidas dentro da metiê fonográfico, o LP é o primeiro passo em uma história que todo fã de música pop adora: o disco pirata. Uma história em que o próprio Bob Dylan é um de seus principais protagonistas.

Like a Rolling Stone

Volte no tempo cinco anos e encontre Bob Dylan no auge de sua carreira. Mais do que se enamorar pelo rock’n’roll, o antigo garoto-prodígio da cena folk e a então voz de sua geração viu na combinação barulhenta de country e rhythm’n’blues em instrumentos elétricos uma capacidade de comunicação mais instantânea e mais ampla do que o beco sem saída das ladainhas ao violão que andava metido. O rock se tornava a nova música popular, o novo som das ruas. Ele reconhecia a reverência que a geração da Invasão Britânica fazia aos grandes nomes do rádio norte-americano dos anos 50 – não à toa, batizou um disco de Bringing it All Back Home ("Trazendo Tudo de Volta pra Casa").

"Os Beatles estavam fazendo o que mais ninguém fazia", disse Dylan em 1971 a um de seus biógrafos, Anthony Scaduto. "Os acordes eram ultrajantes e suas harmonias vocais validavam tudo. Você só pode fazer isso com outros músicos. Foi quando comecei a pensar em trabalhar com outras pessoas. Todo mundo pensava que os Beatles eram pra adolescentes, que logo iam passar. Pra mim, eles tinham chegado pra ficar. Sabia que eles apontavam o rumo que a música devia seguir."

Desde o primeiro momento em que optou pelo rock, não havia meio-termo – tanto que sua "conversão" elétrica foi em alto e bom som no Newport Folk Festival. Dylan subiu no palco no dia 24 de junho de 1964 ao lado do tecladista Al Kooper e da Blues Band de Paul Butterfield, os mesmos músicos com quem, havia pouco mais de uma semana, gravara o hino "Like a Rolling Stone". O single chegou às paradas no mesmo dia em que Dylan encerraria o evento. Ele foi chamado ao palco com entusiasmo pelo cantor Pete Seeger, um dos organizadores, o mesmo que dali a pouco tentaria cortar o cabo de eletricidade com um machado quando a banda de Dylan começou a tocar "Maggie’s Farm".

Era guerra. Chamou os canadenses dos Hawks para ser sua banda e juntos cruzaram 1965 e 1966 na famosa turnê. Na primeira metade do show, Dylan tocava sozinho seu violão; na segunda parte, vinha com a banda e presenteava o público com uma descarga musical bruta e agressiva. A resposta vinha em forma de vaias.

O choque foi intenso para a banda, formada pelo guitarrista Robbie Robertson, o pianista Richard Manuel, o baixista Rick Danko, o organista Garth Hudson e o baterista Levon Helm – tanto que este pediu as contas em novembro de 65, pois não suportava mais ser vaiado. Acostumada a tocar em pequenos pardieiros, a banda era atirada às mais reputadas salas de espetáculo do mundo, do Hollywood Bowl ao Royal Albert Hall, secundando um dos principais artistas jovens da época, e ainda por cima para ser agredida pela platéia. Que, por sua vez, pagava para vaiar.

Se a banda estava chocada, o mesmo não parecia acontecer com Dylan. Desafiava o público, os fãs, os jornalistas e quem mais se colocasse entre ele sua nova música com um humor nonsense e aparente desprezo por todos. Seus discos haviam encontrado, no público de rock que aos poucos amadurecia, uma audiência maior que o conservadorismo folk. Mas aquilo parecia ter ampliado ainda mais seu papel de "voz de uma geração". A agressividade musical parecia atrair outro tipo de agressividade. Violência gera violência. As vaias eram substituídas por xingamentos e pesadas trocas de acusação entre o cantor e a platéia, numa onda cada vez mais crescente em que a própria vida de Dylan parecia correr risco. "Olha o que eles fizeram com o Kennedy em Dallas!", assustou-se o cantor folk Phil Ochs ao assistir ao confronto no estádio de Forest Hills, em Nova York.

Essa história é registrada magistralmente em dois dos mais importantes documentários da história do rock, Don’t Look Back do diretor D.A. Pennebaker, que acompanha o braço inglês da turnê de 1965 e foi crucial para difundir o novo Dylan para todo um planeta ainda não unificado pela TV via satélite, quando foi lançado em 1967; e No Direction Home, de Martin Scorsese, lançado em 2005.

Woodstock

Precisando descansar, Dylan comprou uma casa de campo em Woodstock, assim como seu empresário Albert Grossman, pouco antes de reiniciar a turnê americana, em 1966. Impressionados com a tranqüilidade pastoral da região, próxima de Nova York, os quatro canadenses dos Hawks (só Levon era norte-americano) mudaram-se para uma enorme casa rosa em West Saugerties, próximo à casa de Bob. Montaram seus instrumentos no apertado mas confortável porão de uma horrorosa casa rosa (a "Big Pink"), onde começaram a ensaiar com freqüência, muitas vezes acompanhados por Dylan.

Até que, no dia 30 de julho de 1966, as rádios dos Estados Unidos passaram a noticiar que Bob havia sofrido um acidente de motocicleta. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu e a gravidade do estado de Dylan após os freios de sua Tryumph 500 terem parado de funcionar perto de sua casa, quando foi acompanhar a mulher, Sara Lownds, que saía de carro, em uma volta pela região, no dia 29 de julho. Na época, falavam que ele estava entre a vida e a morte, que o acidente estava apenas encobrindo o fato de ter enlouquecido, que a CIA havia sabotado sua moto. Depois do acidente, Dylan se isolou: não recebia visitas, falava com os amigos por meio de um interfone e não saía mais de seu quarto.

Quando começou a fazê-lo, encontrou sua banda em outro plano. Sem bateria, tocavam mais devagar e mais baixo, sem perder a pegada rock. A atmosfera do porão dava uma estranha vida ao local e som ecoava por mais tempo, como uma velha transmissão de radio. O lugar combinava com o som que lembrava em sua reclusão, som de infância, entre o blues e a música folk, de artistas anônimos e trovadores atordoados. À medida em que se recuperava, voltou a tocar com a banda, que não tinha mais nome. Eram apenas "The Band".

Puseram o gravador para funcionar e em abril de 1967 começaram os históricos registros. Poucos instrumentos, tocados informalmente, entre tentativas e risadas, eram o centro dessa viagem ao passado em que nem Dylan nem a Band, podiam saber, conjurou espíritos de diferentes eras do som gravado nos EUA. Os cinco se tornavam um conjunto vocal, a princípio parodiando cantores antigos com vozes cômicas que, pouco a pouco, ganhavam um novo significado. Compunham músicas com se estivessem apenas tentando lembrar delas, numa jam session espiritual de retorno à infância de suas musicalidades. Ao comparar o som do porão ao de um laboratório, o Greil Marcus ouviu algo bem diferente de Robbie Robertson: "Não", disse o guitarrista no livro Invisible Republic. "Aquilo era uma conspiração. Era como as fitas de Watergate. Pra muitas coisas, Bob dizia ‘devíamos destruir isso!’."

Quatorze dessas faixas foram transformadas em discos de acetato por Albert Grossman. Dylan não tinha a intenção de lançar aquelas gravações, mas aproveitou para oferece-las a outros intérpretes. "Quinn the Eskimo" foi para Manfred Mann; "You Ain’t Goin’ Nowhere" para os Byrds; "This Wheel’s on Fire" caiu com Julie Driscoll, Brian Auger & the Trinity; "Too Much of Nothing" ficou com Peter, Paul & Mary. Cada artista que registrava algo daquele misterioso material dava dimensões ainda maiores às versões originais, como se elas encobrissem algum segredo.

O segredo, na verdade, eram as próprias fitas – já então apelidadas com seu nome clássico de "basement tapes" ("fitas do porão"). Dylan, aos poucos, voltava à carreira via country (o disco John Wesley Harding, gravado em Nashville, e na aparição no show em tributo a Woody Guthrie no Carniege Hall, em janeiro de 1968). Ao mesmo tempo, cópias daquele acetato circulavam entre artistas, jornalistas, fãs e empresários, revelando a música que Bob Dylan vinha fazendo quando virou as costas para o Verão do Amor. Reuniu-se com os amigos e voltou para o passado, num clima de convivência mais honesto e intenso que o sexo desesperado do amor livre, a piração ablué das drogas psicodélicas ou o ruído estridente do rock'n'roll. Eram apenas amigos fazendo música. Folk, direitos civis, psicodelia – estava cansado de pegar carona na onda dos outros.

Com as "fitas do porão", era a vez dos outros seguirem sua onda. E foi assim que os Rolling Stones saíram do abismo paz e amor onde nunca deveriam ter ido, exilados uma chácara no interior de São Paulo, no Brasil, para compor seu disco mais "raiz", Beggar’s Banquet, ouvindo as basement tapes sem parar. Nos Beatles, foi George Harrison quem deu a dica de Dylan e fez Paul McCartney bolar o conceito do disco Get Back, em que o grupo voltaria a descobrir o prazer de estar junto tocando músicas velhas – um projeto que deu errado, acelerou o fim da banda, e culminou nos disco e filme de mesmo nome, Let it Be. A música country era reavaliada e tinha sua importância ressarcida. Woodstock tornou-se o palco para o megafestival e sinônimo de todo aquele sentimento. Uma saída melancólica mas digna para a autodestrutiva psicodelia, já em rota de colisão, as basement tapes foram uma espécie de amuleto para a passagem dos anos 60 para os 70.

The Basement Tapes

Daí que em 1969 veio The Great White Wonder, dali a pouco Troubled Troubador, Waters of Oblivion e vários outros discos piratas, que ampliavam ainda mais o número de músicas do porão – das 14 originais foram para 23 em 1975, o ano em que a Columbia oficializar o disco, com todas as faixas (24! Uma única faixa desconhecida dos fãs, "Goin’ to Acapulco", indicava que ainda havia mais a se descobrir) num mesmo volume. Mas a gravadora não gostou do som das fitas e fez a Band regravar algumas partes, descaracterizando-as. Oficializado, The Basement Tapes chegou aos dez discos mais vendidos na semana de seu lançamento: "Eu pensava que todo mundo já tivesse essas músicas!", disse Dylan, surpreso.

Contudo, duas novas coletâneas piratas Blind Boy Grundy & the Hawks volumes 1 e 2 (o título vem dos nomes que Dylan e a Band usavam antes de serem conhecidos), só com faixas inéditas foram lançadas logo após o disco da Columbia, ampliando ainda as basement tapes. No livro Bootleg: The Secret History of Rock and Roll, o escritor Clinton Heylin localiza a origem deste segundo lote quando um amigo de Robbie Robertson deu uma série de fitas a uma loja no noroeste americano. Um terceiro lote de fitas seria encontrado e todas as gravações conhecidas das basement tapes seriam compiladas numa caixa de cinco CDs de 1990 – que melhoraram edição após edição até chegar ao box A Tree With Roots, de 2001.

A quantidade de artigos da pirataria Dylan o torna o artista mais lançado extra-oficialmente do mundo – até mais que os Beatles, pois eles terminaram em 1970. Só a existência de Jewels and Binoculars, uma única caixa com 26 CDs dedicadas a seus shows em um ano (1966, da gravadora Vigotone) já deveria servir como prova disso. Ele também contribui, produzindo mais do que pode lançar, trocando versões matadoras por faixas fracas em cima da hora, refazendo discos sem pestanejar. Tanto que começou a desovar este material em coletâneas oficias, como na Biography, em que comenta sobre a pirataria no encarte: "Eles tem coisas que se faz em uma cabine telefônica. Quando não tem ninguém por perto. Você num motel, sozinho, não conhece ninguém e... É como se o telefone estivesse grampeado... Aí aparece num disco pirata. Com uma foto de você que foi tirada debaixo da sua cama e com um título meio strip-tease, custando 30 contos. E depois você pergunta porque tantos artistas são paranóicos."

Dylan entrou pra valer no jogo quando lançou sua série pirata, em 1991. A princípio, uma caixa com três CDs cheios de relíquias para maníacos e faixas incríveis para o público em geral, as Bootleg Series já estão em seu sétimo volume (a trilha sonora de No Direction Home) e nem sinal das basement tapes oficializadas mesmo – na íntegra, sem retoques, sem remasterização moderna. Como o documentário de Scorsese termina no misterioso acidente de moto, já especula-se sobre um segundo filme, que nos levaria às profundezas do mítico porão.
"Dylan, mais do que muitas figuras públicas viveu numa nuvem de desinformação e mito, boa parte deliberadamente criada ou encorajada por ele para aumentar sua própria imagem", me disse Howard Sounes, outro biógrafo do músico. Marcus conclui: "Eu não tenho a menor idéia do que Dylan acha disso tudo. Contudo, não fui o único a notar que seu disco de 1970, Self Portrait (Auto-retrato), era um apanhado de faixas ao vivo, sobras, versões de segunda categoria e peças inacabadas, muito parecido com o disco que o precedeu, The Great White Wonder.

O início de tudo


Era só um menino recém-chegado aos 20 anos, um violão na sacola, uma idéia fixa de encontrar seu ídolo, Woody Guthrie (na época à beira da morte, em um leito de hospital) e uma determinação incrível de seguir atrás dos seus sonhos.

Corria o ano de 1961 e após uma breve passagem pelas “cidades gêmeas” de Minneapolis e St. Paul e outra, ainda mais breve, por Chicago, aquele garoto franzino vindo de Hibbing, chegava à fria Nova York, enquanto um rigoroso inverno castigava a cidade. Havia, entretanto, um local que fervia na grande maçã. Era o frenético Greenwich Village, onde se encontravam os cantores folk, poetas beatniks, escritores e outros diversos artistas. Naquele cenário agitado, o jovem Dylan daria seus primeiros passos rumo a gloria e desses primeiros passos, talvez o maior tenha sido exatamente a gravação do seu primeiro disco, chamado simplesmente “Bob Dylan”.

Um álbum muitas vezes subestimado na discografia do trovador norte-americano, mas que já dava uma boa mostra do gênio que ali surgia. É bem verdade que apenas duas canções, das 13 que compunham o disco, eram da lavra do próprio Bob: “Song to Woody” e “Talkin' New York”, mas mesmo estas já apontavam um futuro bastante promissor para aquele rapaz de cabelos desgrenhados e roupa esfarrapada. No restante do repertório, ele visitava canções tradicionais, algumas até de autoria desconhecida, além de novas versões de velhos blues de Jesse Fuller; Bukka White e Blind Lemon Jefferson.

A gravação do disco e consequentemente o contrato de Dylan com a Columbia Records só foi possível graças à influência de John Hammond, o mais destacado executivo da indústria fonográfica dos EUA, naqueles tempos. Hammond, que já havia projetado Billie Holliday, ouvira Dylan tocar gaita numa sessão de gravação de Carolyn Hester e decidiu apostar naquele jovem músico, ao descobrir que ele também compunha seu próprio repertório.

O disco, gravado entre os dias 20 e 22 de novembro de 1961, ao custo de apenas US$ 402,00 somente seria lançado em março de 1962. Como as vendagens foram muito aquém do esperado, cerca de 5 mil exemplares no primeiro ano, Bob passou a ser chamado pejorativamente de “loucura do Hammond”. Mas o lendário executivo sabia que tinha em mãos uma aposta segura.

O álbum todo tinha um clima “on the road”, viajante, bem ao estilo daquela época, um verdadeiro passeio pelo território americano, uma viagem cheia de imagens, histórias, estradas, trens, estações...

O Dylan que ali surgia era o viajante, o explorador, o expedicionário, como ele próprio se definiria décadas mais tarde. Ainda jovem, naquele disco já estava o Dylan homem, o poeta, mas acima de tudo o trovador, o caipira, o contador de histórias. Já transparecia o embrião do compositor que viria a ser e do intérprete inconfundível que já havia se tornado. O primeiro Dylan já era único, já era gênio.

A força de sua interpretação, a maneira muito singular de abordar os temas e cuspir as palavras de forma crua, por vezes irada e em outras, irônica, o viés contestador, embora ainda não tão intenso, estava tudo ali. Naquele primeiro disco já estavam presentes todos os indícios daquele artista que durante as próximas décadas transformaria a música e a si mesmo, tantas e tantas vezes. Talvez o velho Hammond já soubesse que dali em diante as pedras iriam rolar, as chuvas cairiam e as respostas soprariam no vento...

sexta-feira, 4 de abril de 2008

A Balada de A. J. Weberman


Não é de hoje que alguns anônimos procuram desesperadamente pelo status de celebridade ou mesmo por aqueles 15 minutinhos de fama, ao qual se referia Andy Warhol. Nas décadas de 60 e 70, no auge da carreira, Bob Dylan foi vítima da obsessão e loucura de Alan Jules Weberman, um fã lunático e desequilibrado, que inventou a "Dylanologia", um estudo das letras, músicas e pensamentos de Bob Dylan e se auto-proclamou a maior autoridade mundial sobre Bob Dylan.

Entre as esquisitices deste fã obsessivo, está a criação de outra ciência: a "garbologia", que consistia em estudar a vida da pessoa, investigando o lixo que ela produz. Weberman fazia plantão em frente à casa dos Dylan na MacDougal Street em New York, para recolher o lixo e assim desenvolver suas teses malucas sobre a obra do mestre. Weberman escrevia artigos para jornais, fanzines e revistas universitárias. Revoltado com o que ele classificava de afastamento do Dylan das canções de protesto, resolveu fundar a Dylan Liberation Front, comandando manifestações com palavras de ordem do tipo "Liberte Bob Dylan de si próprio" ou "O cérebro de Dylan pertence ao povo".

Cansado de ter sua privacidade invadida por este sujeito alucinado, Dylan, que no início levava aquilo tudo com certo bom humor, resolveu interpelá-lo. Algumas conversas telefônicas entre ídolo e fã, hilárias por sinal, foram parar nas mãos de colecionadores no mundo inteiro. Numa atitude extrema, Bob chegou a partir pra cima de A. J., agredindo o fã, que longe de se defender se disse feliz "por ser um dos poucos a ter o Dylan por cima, além de sua esposa".

Na década de 80, Weberman chegou a publicar um livro, chamado "My Life in Garbology" e recentemente, os diretores James Bluemel e Olive Ralfe lançaram o documentário "Ballad of A. J. Weberman" sobre as aventuras deste psicopata.

Pesquisando Dylan

Você é daqueles que gosta de pesquisar na internet mais detalhes sobre a vida e a obra de Bob Dylan? Então essa dica é pra você. Aqui vão alguns sites espalhados pela rede, onde é possível achar uma série de informações interessantes a respeito do bardo:
Primeiro, uma espécie de "Buscador Dylanesco". Um site chamado "The Book of Bob", onde você digita uma frase ou palavra e ele vai buscar a(s) música(s) do Dylan que contenham sua pesquisa.

http://www.slopbucket.com/cgi-bin/frisk-bob.cgi

Outro site bacana é "Bob on the Side", com várias participações de Dylan em discos de outros artistas.

http://www.searchingforagem.com/Misc/Sidesman.htm

E mais um que merece destaque é "Warehouse Eyes", com "reviews" de todos os álbuns do mestre.

http://warehouseeyes.netfirms.com/

Siga os links e boa pesquisa!

O velho trovador e o contador de histórias


Outro que teve a feliz oportunidade de realizar o sonho de ver o velho trovador, ao vivo e em pessoa, foi meu amigo Diego Quadros, de Porto Alegre-RS, um sujeito da melhor qualidade e exímio contador de histórias. Eis aqui seu relato emocionado, sobre o show de Bob Dylan em Buenos Aires, Argentina:

Antes do show

Há um ano atrás, mais ou menos, eu tinha dois sonhos. Um eu considerava irrealizável; o outro seria apenas uma questão de tempo. Ver Bob Dylan ao vivo e em cores, pessoalmente, frente a frente, para mim estava fora de questão – seria impossível. Não acreditava que uma eventual volta ao Brasil ocorresse antes de sua aposentadoria ou quem sabe até de sua morte. Conhecer Buenos Aires parecia um plano muito mais próximo e passível de ser concretizado – e outra: era algo que dependia somente de mim.

Porém, mesmo quando se confirmou que a Never Ending Tour passaria por terras sul-americanas, a idéia de unir os dois sonhos num só, algo digno de uma aventura extraída de uma canção dylanesca, parecia bem distante. Questões financeiras, profissionais, emocionais, psicológicas, entre outras, estavam em jogo. Me mandar pra outro país, assim, na cara e na coragem, no peitaço, sem tempo de planejar de forma segura uma viagem de tal porte... e, ainda por cima, sozinho! Imaginem, não era coisa para se decidir do dia pra noite.

Um dos fatores que pesou bastante na minha conclusão de que esta seria uma oportunidade imperdível foi ter assistido ao filme I’m Not There. Em especial, a parte sobre o gurizinho negro chamado Woody Guthrie que cruzava os EUA em vagões de trem. Talvez ter lido a biografia de Sounes sobre Dylan também tenha surtido seu efeito em mim. Boa parte do que eu admiro no passado do trovador de Minnesota é justamente o que acabou lhe tornando uma espécie de cidadão do mundo: a coragem de se tocar por aí desde muito jovem, sem saber o que encontraria no meio do caminho e não tendo uma idéia muito clara de para onde iria, mas com a firme convicção de que precisava estar lá.

Percebi que comigo ocorreria algo parecido - embora em menor escala, naturalmente. Na verdade, a viagem a Buenos Aires para assistir ao show de Bob Dylan foi, antes de mais nada, uma viagem de estréias, de acontecimentos até então inéditos: minha primeira jornada internacional, minha primeira vez andando de avião (perdi o ônibus que me traria de volta devido a uma farra com uns chilenos...), a primeira vez em que encontraria uma amiga do Orkut (a indescritível Ana Luiza) e assim por diante... mas confesso que também não me senti tão estrangeiro por lá, não...

Já na ida, durante os muitos quilômetros que o ônibus ia percorrendo por estradas brasileiras e argentinas, eu tive a oportunidade de trocar algumas palavras com uns companheiros de Porto Alegre que viajavam pelo mesmo motivo. Na verdade, só falamos sobre o show quando estávamos chegando na rodoviária de Buenos Aires... perguntei se eles iam ao show, daí contei que estava lá mas nem sequer ingresso eu tinha, ao que eles muito se admiraram.... algo como: “Putz, cara! Veio pra cá sem nem ter a garantia de que vai no show? Tu é louco?”

A saga de conseguir o ingresso, aliás, a partir do momento em que pisei em solo porteño, foi uma Odisséia tão digna de nota quanto o foi a volta pro hotel no pós-show. Vou resumir descrevendo que uma série de desencontros com a Ana Luiza – que se encarregara de comprar minha entrada um dia antes da minha chegada por lá - acabou resultando numa correria da nossa parte entre os pontos de venda (cujos ingressos já estavam esgotados) e incessantes tentativas de ligar para a Top Show a fim de saber se ainda restavam bilhetes disponíveis para a área VIP. Conclusão: 21 horas de sábado, faltando menos de meia hora para o início do concerto, e nós ainda estávamos na fila da bilheteria.

Entrando no estádio do Vélez, após uma pausa para a Ana Luiza comprar uns souvenires do evento, fomos para as cadeirinhas da área VIP. Havia uma espécie de Dylan argentino por lá (com o perdão da comparação inconveniente) fazendo o seu número, e tamanha foi a minha surpresa quando ele chamou ao palco para uma apresentação final uma figura hermana a quem admiro muito: o grande e controvertido roqueiro Charly Garcia. Eles tocaram aos violões duas canções muito bonitas e ainda Garcia teve a oportunidade de gracejar em castelhano algo que eu entendi como sendo: “Tudo por Bobby!”

Atrás de mim, a torre de som e a cerca que separava o lugar de onde eu estava da platéia geral. Frontalmente, a uns trinta ou quarenta metros, o palco (sim, não fiquei muito próximo do mesmo, embora tivesse uma visão relativamente decente dos artistas). Acima, um céu repleto de estrelas. Ao redor, as arquibancadas do estádio, que se enchiam cada vez mais de fãs e apreciadores... ficava claro que a noite seria memorável!

E foi!

Faço um interlúdio aqui para destacar um ponto (o único, na real) que considero negativo: a proibição da venda de cervejas no evento. Putz, assistir ao Bob Dylan detonando com sua banda sem poder ingerir uma gota sequer desse néctar dos deuses era sacrilégio dos mais atrevidos. Enquanto reclamava disso para a Luiza, um camarada que estava sentado ao meu lado interveio com a pergunta: “Cara, vocês são brasileiros?” Respondi que sim e devolvi questionando de onde ele era. “Sou de Porto Alegre!” E eu vibrando: “Bah, que afudê, véio! Eu também!” A minha parceira de aventuras disse que era de São Paulo e ainda resolveu acrescentar, com seu humor inglês: “Pronto, se acharam agora!” Estava tudo muito descontraído e agradável.


Passados alguns minutos, a Luiza voltou para o seu assento (ela estava algumas fileiras a frente da minha), meu conterrâneo foi comprar um refrigerante e eu resolvi acender um cigarro para refletir sobre a importância do momento. A ficha ainda não tinha caído por completo... e então as luzes se apagaram! A argentinada foi à loucura – principalmente os que estavam na platéia geral, entre campo e arquibancada, os quais se tratavam de fãs mesmo, coisa que eu não acreditava haver muito na área VIP... Um mestre de cerimônias no alto-falante começou uma introdução em inglês, algo como “Poet Laureate of Rock” e tal, até culminar no: “Ladies and gentlemen: Bob Dylan!” E aí mais um capítulo na história de todos que estavam naquele estádio, entre artistas, membros da equipe técnica, organizadores e fãs, começou a ser escrito.

Durante o show

Bob Dylan e sua banda entraram com tudo, descendo a lenha numa versão de Rainy Day Women #12 & 35 que – por alguma razão – me lembrou em muito a pegada blueseira furiosa de Elmore James. Muitos se levantaram da suas cadeirinhas e começaram a andar em direção ao palco, inclusive eu, mas o pessoal da organização estava impondo uma disciplina rígida, e logo tivemos que voltar para nossos assentos de origem. Sem problemas! As sacudidas bruscas com a cabeça e as batidas fortes com os pés no chão revelavam o grau de nossa empolgação.

Cabe dizer aqui o quanto é importante para um fã ver Dylan empunhando uma guitarra elétrica hoje em dia, por duas ou três canções que o seja... é algo que fica impresso de forma muito clara no espírito. É uma imagem fortíssima! Sintomática! É o velho Dylan em ação! É Robert Allen Zimermann, Elston Gunn, o par de Joan Baez, o palhaço de cara pintada do circo itinerante Rolling Thunder Revue, o Dylan raivoso que vociferava ao lado da The Band no excelente Before The Flood, era todas as faces de Bob Dylan em um homem só...

Estava pensando nisso quando aconteceu o segundo fato da noite para mim em termos de relevância: a execução de Lay Lady Lay. Essa, como sua antecessora, deu para reconhecer logo de cara, pois estava com arranjo igual ao da versão de estúdio. Em menos de um minuto meus olhos se encheram de lágrimas. Acho que foi aí que me dei conta de que um sonho que até bem pouco tempo eu considerava ser impossível de acontecer estava se tornando realidade: era ele que estava ali, logo mais a frente... Não cheguei ao ponto de chorar, embora muito desejasse que isso ocorresse... de qualquer forma, a visão ficou turva por um bom tempo devido a água que tomava conta dos globos oculares. Estávamos recém na segunda música do set list e eu já me encontrava profundamente comovido com toda aquela situação que beirava o surreal.

A partir daí, foi uma seqüência devastadora de músicas, entre grandes sucessos da carreira e canções dos discos mais recentes. Belos álbuns estavam sendo lembrados por lá: Blonde on Blonde, John Wesley Harding, Highway 61 Revisited, Nashville Skyline, The Freewheelin’ Bob Dylan, Love and Theft, Modern Times. Este último, aliás, eu conheci exatamente nesse show: baixei Modern Times da internet no exato dia de seu lançamento, mas até a noite de 15 de março de 2008, acreditem ou não, eu nunca o havia escutado. E gostei - pelo menos das músicas tocadas nessa ocasião - bastante.

Outra coisa digna de se mencionar é sobre a voz do bardo: tenho lido comentários que preferem salientar a degradação e a falta de qualidade técnica de suas cordas vocais – como fizeram durante toda sua carreira, na verdade. Pra mim isso é bobagem! Ao vivo, ela continua expressiva e penetrante, capaz de se infiltrar em cada poro da pele e irromper de um ouvido ao outro. É fato notório que o Dylan de sessenta e seis anos não é o mesmo que o de vinte. Mas, considerando os efeitos que a idade produz no ser-humano, o velho continua esbanjando energia sonora. E, particularmente, essa voz “degradada” sempre me soou bem. É algo que é só dele, ninguém mais tem igual, é uma peculiaridade, uma marca registrada. São coisas como essa que contribuem para fazer dele o que é hoje: um mito, uma lenda.

A mesma lenda que presenteou seu público com o que talvez tenha sido a maior surpresa da noite: Just Like A Woman. Tentar advinhar as canções que o cara toca em seus shows no primeiro minuto é tarefa árdua para alguns fãs. Eu já não tive tanta dificuldade. Com exceção das músicas dos dois últimos discos, que eu ainda não tinha ouvido, não me foi problema identificar qualquer das canções do concerto que me eram familiares. E Just Like A Woman está nesse time. Embora a banda tenha tocado a introdução de forma um tanto diferente da original, nos primeiros dez segundos eu já sabia se tratar desse baita sucesso. A Ana Luiza me contou que tinha sido pra ela, que era uma das suas favoritas e tal, e que seria um sonho se ele a tocasse. Então, mais um sonho realizado. E a cada vez que a célebre frase de violão após o refrão era reproduzida, meu conterrâneo e eu nos olhávamos e repetíamos: “Que afudê, cara! Que do caralho!”

A propósito, outra situação inusitada deu-se quando lá pelo meio do show, durante uma música que não me recordo qual foi, o público da arquibancada começou a marcar o compasso com palmas. Meu conterrâneo e eu tentamos puxar o gesto ali pela área VIP, mas não obtivemos muito sucesso: apenas mais alguns nos seguiram nesse ato. De qualquer forma, fomos acompanhando o pessoal da platéia geral por uns dois ou três minutos, conduzindo o ritmo com palmas juntinho ao som da bateria, até que elas foram se apagando gradualmente. Meu conterrâneo comentou: “É, morreu!” E eu disse algo do tipo: “Ah, área VIP é foda!” Então ele me encarou e fez uma observação que, apesar de simples, achei profundamente conveniente à situação: “Bem, foi um belo momento!”

Depois de uma hora e meia, creio eu, veio o instante certamente mais aguardado pela absoluta maioria dos espectadores. Tudo me pareceu ocorrer rápido demais. Meu conterrâneo soltou um “Bah, será que é?” rico em empolgação. Respondi que achava parecida, mas que não podia ser, ainda estávamos na metade do show. Mas a verdade, meus amigos, era que já estávamos no final da apresentação, isso sim. É impressionante como momentos que apreciamos muito atravessam o tempo numa velocidade frenética. Sim, camaradas, no fundo era ela mesma: Like A Rolling Stone! E então todos ficaram de pé. Absolutamente todos. E não havia segurança capaz de fazer com que sentássemos. Nem na ala VIP, nem no campo, nem nas arquibancadas, nem no raio que o parta... estavam todos dançando... estavam todos gritando... alguns uivavam, outros assobiavam... enfim, as dezenas de milhares de pessoas que se encontravam dentro daquele estádio estavam na mais pura sintonia com os artistas.

E em seguida a banda partiu!

É claro que muitos sabiam que eles retornariam para o bis. Meu conterrâneo observou: “É impressionante! Ele não fala um ‘ai’, vai dizer?” E eu: “Aham, ele entra mudo e sai calado, mas é isso que eu gosto nele! Não tem que ficar puxando o saco do público! Ele não precisa disso!” E então meu camarada: “Também, mais do que ele já diz nas suas músicas...” Passados alguns minutos, para o delírio geral, Bob Dylan e seu grupo voltaram, dirigiram-se aos seus instrumentos e mandaram ver novamente.

De Like A Rolling Stone em diante ninguém mais se sentou. Ninguém mais ficou parado. Stuck Inside Of Mobile With The Memphis Blues Again serviu de preparativo perfeito para o que deveria (sim, isso mesmo: “deveria”) ser a última canção da noite: All Along The Watchtower. Pancadaria sonora! Dylan foi folk! Dylan foi blues! E Dylan foi rock! Ao meu redor, adolescentes, velhos e pessoas de meia-idade sacudiam seus corpos como se estivessem assistindo a um show do Iron Maiden, por exemplo. Depois de baixar o cacete nos instrumentos, entre aplausos e ovações, a banda foi para a frente do palco e se abraçou, agradecendo aos presentes. Bob mencionou algumas palavras, inclusive o esperado “Thank you, friends!” e deu a impressão de que esta seria a última coisa que ouviríamos dele. Mas algo estranho na atmosfera do estádio fez com que nós acreditássemos no contrário.

E eis que surge outra grande surpresa!

Meu conterrâneo repetia incessantemente: “Acho que rola mais uma, hein? Acho que rola mais uma!” E, apesar de saber que no Brasil Dylan tocara somente dezessete músicas, sendo duas no bis, eu também pensava igual: “Também acho, velho! Ele me parece emocionado! Acho que ele se emocionou! Acho que rola mais uma sim!” E rolou! Os integrantes da banda reassumiram suas posições e Blowin’ In The Wind despontou imponente pelos amplificadores. Porra, essa era a mesma canção que há quarenta e tantos anos atrás ajudava a projetar aquele que definiria e mudaria o rumo da música pop. Talvez uma de suas músicas mais simples. E também uma das mais belas.

E enquanto Bob Dylan costurava seu conhecido “the answer my friend is blowin’ in the wind” aconteceu o que pra mim foi o momento mais significativo da noite, superando a catarse que tive em Lay Lady Lay: um facho de luz acima da minha cabeça, um pouco à esquerda, me chamou a atenção. Era uma estrela cadente, caralho! Pensem na simbologia que esse troço representou pra mim na hora: a última música do show, que ninguém – nem mesmo os mais otimistas – seria capaz de esperar há minutos atrás, e um rastro de fogo me rasga o céu, como que anunciando que ali estava terminando um desses eventos que só ocorrem a cada trezentos ou quatrocentos anos, algo como a passagem do cometa Halley ou coisa que o valha… Pensei nitidamente: “Puta que pariu, nessa ninguém vai acreditar!” E acho muito difícil que vocês acreditem mesmo… provavelmente eu também não engoliria essa história, caso me contassem… mas que se foda! O fato é que eu testemunhei um fenômeno natural durante a música derradeira de um show de Bob Dylan a céu aberto. É uma cena que está bem viva na minha memória e que ninguém será capaz de me tirar.

Um gran finale!

Digno de um artista de tal porte... digno de alguém com uma carreira tão rica!

Depois do show

Terminado o concerto, Ana Luiza e eu nos despedimos do meu conterrâneo – não sem antes brincarmos de que poderíamos tentar roubar o Oscar de cima do amplificador – e partimos rumo ao que seria a Odisséia de volta. Perdemos pelo menos duas horas e meia em tentativas frustradas de encontrar táxi para nos levar de volta ao Centro (o estádio do Vélez fica bem no limite da capital, quase na província). Poucos veículos estavam vazios, e estes nem sequer se davam ao trabalho de parar, sabe-se lá por quê. Encontramos outros dois porto-alegrenses com o mesmo problema e resolvemos tentar enfrentar a situação juntos. Dito assim até parece comédia pastelão, mas na hora foi foda! Depois de um tempão sem conseguir um meio para voltar, a sensação de desamparo e desespero começava a tomar conta da gente. Quando um taxista resolveu parar, vibramos como torcedores num gol do Boca Juniors. Mas acontece que o filho-da-puta parou no meio do caminho com a desculpa de que o pneu estava murcho e nos deixou por lá mesmo...

Porém no final tudo deu certo. Passei boa parte do percurso apresentando a mim mesmo minhas considerações acerca do que é, atualmente, assistir a um show do Bob Dylan. Concluí que apresentava sentimentos opostos. Parte do meu pensar estava contente com o fato de que o velho tocasse num estádio que, embora não estivesse com lotação esgotada, ainda assim contava com algumas boas dezenas de milhares de pessoas, coisa mais do que merecida por ele. Por outro lado, também considerei que a banda – excelente, acrescente-se –, do jeito como está formada, é perfeita para tocar em clubes pequenos, coisa como nos filmes norte-americanos na linha de The Blues Brothers (Os Irmãos Cara-de-Pau). A referência expressa pelo figurino do conjunto, inclusive, talvez não seja mera coincidência.

O show teve uma forte influência do blues. Os instrumentistas são todos excelentes, e a cada solo de algum deles (ou mesmo do velho Bob), eu olhava para um dos três telões pendurados na torre de som atrás de mim no intuito de perceber com maiores detalhes suas expressões faciais... eu queria estar ali, ao lado deles, compartilhando das mesmas emoções, do mesmo gosto pela arte musical. Por fim, creio que Dylan acabou envelhecendo com dignidade. Alguns artistas preferem agir como jovens durante seus espetáculos, o que talvez seja o caso dos Rolling Stones... outros, e Bob Dylan me parece seguir essa linha, preferem assumir a condição imposta pela idade, no entanto olhando sempre para frente, sabendo que o fim até que pode estar próximo, mas com a certeza de que, enquanto isso não acontecer, continuarão andando a passos firmes rumo ao desconhecido...